Centro de Estudos em Fotografia de Tomar - Fotografia e Território

Entrevista A Invenção da Amnésia - Parte 1

Entrevistas
Fotógrafos: Fernando Brito, Miguel Rodrigues, Nuno Andrade

Conversa com os autores do projecto colectivo “Invenção da Amnésia”, a pretexto da exposição na Casa dos Cubos entre 19 de Junho e 28 de Agosto de 2021.

 

João Henriques (JH). Começo por vos perguntar o que é que vos levou a apresentar este trabalho em colectivo, e o que é que significa trabalhar num projecto colectivamente? Interagem uns com os outros na definição técnica, estética e conceptual de cada um dos projectos individuais, ao nível da produção das imagens, da apresentação? Quais são as dificuldades inerentes a esse processo?

 

Fernando Brito (FB) - No meu entendimento, este projecto vive de várias tensões, uma das quais se situa precisamente no campo da interacção e integração entre as várias propostas individuais, no sentido da construção de uma totalidade. Existem dois pontos de partida comuns, a nossa experiência continuada com a E.N.10, e o convocar da diferenciação entre o conhecimento abstracto e o conhecimento íntimo do espaço, do Yu Fu Tuan. A partir daí cada autor desenvolve a sua obra de forma autónoma. Desde o início que traçámos como objectivo, que este projecto não se resumisse a um mero repositório de projectos individuais, mas sim a expressão das diferentes abordagens, a forma como a heterogeneidade dos projectos pode construir uma proposta colectiva. Gostava de relembrar que para além de mim, do Miguel Rodrigues e do Nuno Andrade, participam neste projecto o Renato Japi, escultor, o André Fontes, escritor, que teve uma excelente intervenção no Project Room do Museu da Paisagem e o Alexandre Alagôa, que trabalha em cinema experimental e arte sonora.

Os momentos de tensão surgem, acima de tudo, nos vários processos expositivos, sobre essa tensão costumo fazer esta analogia: no C.E.R.N. (Centro Europeu de Pesquisa Nuclear) em Genéve, os investigadores em física fazem chocar partículas à velocidade da luz; posteriormente verificam o que aconteceu às partículas que chocaram, a energia que geraram, se existiu uma divisão em partículas mais pequenas, isto é, de que forma se produziu a sua desagregação. No contexto deste projecto, estou sobretudo interessado na forma como trabalhamos a partir dessa desagregação inicial e da energia gerada pelo confluir dos vários contributos individuais. É a partir daí que se constrói a integração e a interacção entre eles.

 

 ©Nuno Andrade

Imagem: Nuno Andrade

 

Nuno Andrade (NA) - Creio que o que nos motivou a desenvolver este trabalho em colectivo foi o facto de todos nos relacionarmos com a estrada, física ou afectivamente. Esse foi o ponto de partida para este projecto. Se tivesse realizado este projecto individualmente, não creio que o processo teria sido muito diferente do adoptado. Cada um foi livre de seguir a sua própria estrada e apresentá-la como pretende. O facto de sermos um grupo de artistas com visões e abordagens distintas, torna o processo mais interessante e desafiante. Os projectos são desenvolvidos individualmente mas acabamos sempre por nos cruzar ao longo do processo, quer seja deliberadamente, quer seja quando trabalhamos no desenho de uma exposição e vamos descobrindo denominadores e espaços comuns que acabaram por se revelar, ao acaso.

 

Miguel Rodrigues (MR) - Há uma questão de princípio, que está na génese do projecto, de olhar para o território dos nossos hábitos, de trazer o foco da atenção para elementos do nosso quotidiano que, frequentemente, se escondem por trás de automatismos comportamentais. Esta questão nasceu de conversas, primeiro entre mim e o Fernando, e depois com todos os participantes, principalmente, o Nuno e o Renato. A partir daqui, os processos desenvolveram-se numa lógica pessoal, de relação de cada autor com esses processos, até voltar aos encontros e discussão conjunta de ideias com vista às apresentações. Assim, as ideias são discutidas inicialmente em grupo, sendo depois desenvolvidas individualmente, e há um retorno à lógica colectiva na montagem, numa tentativa de articulação dos campos de expressão de cada um num campo de articulação colectiva; numa teia que possa sustentar o espaço que cada um abre com a sua investigação pessoal e torná-lo inteligível para o público.

Os desafios deste projecto são também os elementos que permitem maior aprendizagem: a troca de ideias que permite que trabalhos muito pessoais sejam reabertos, depois da conclusão individual, e submetidos a um processo de edição colectiva. Seria este o caso em qualquer trabalho artístico, mas aqui, ainda mais, porque cada um está a olhar para si e para os seus hábitos com os seus espaços de experiência, e é esse território da intimidade que é posto em articulação.

 

 JH. Face ao entendimento sobre a parte mais colectiva deste processo, qual foi a génese do vosso projecto individual, o que é que vos motivou a fazê-lo?

 

NA - O que me motivou talvez tenha sido a vontade de “redescobrir” um território que conheço e habito, mas que sabia ter muito mais para me relevar. Sempre me interessou conhecer mais acerca das pessoas e sítios que me fascinam ou a que/quem me ligo. Este facto tem-se relevado nos trabalhos que tenho desenvolvido ao longo dos últimos anos e nos locais onde os tenho realizado, sempre num território que me é familiar e com que me identifico. Tenho usado a fotografia como uma ferramenta que me ajuda neste processo de pesquisa e (auto)descoberta.

Imagem: Miguel Rodrigues

 

MR - De uma maneira ou de outra, sempre trabalhei em torno do hábito como um campo de expressão. Aquilo que é a dimensão pessoal do sujeito, é para mim indiscernível da dimensão espacial e social. E se a relação das dimensões pessoal e social está bem desenvolvida, a relação da pessoa com o espaço não me parece tanto. E quando digo espaço, não é o espaço em que o social se manifesta, é uma questão mais básica. Há uns anos, comecei a questionar-me sobre o porquê de fazer sempre os mesmos percursos no bairro Lisboeta onde vivia. Não apenas o café, onde já nem precisava de pedir o abatanado e a merenda habituais quando entrava, mas também os mesmos percursos de casa até à paragem do autocarro, até à escola, até à paragem do autocarro, até casa. Muitas vezes, até os mesmos gestos eram repetidos, dentro do mesmo percurso.

Levantamo-nos para o mesmo lado da cama todas as manhãs, colocamos o mesmo pé no chão, apoiamos o peso sistematicamente no mesmo lado do corpo para nos levantarmos, lavamos os dentes com a mesma mão a repetir os mesmos gestos, começando do mesmo lado da boca. Quantos de nós conhecem esta rotina em si mesmos? Quantos de nós pensam na forma como essas coisas – e a forma como o espaço em que acontecem ajuda a moldá-las, pesam nos grandes pensamentos que temos sem saber bem de onde vieram?

Neste projecto, entre as várias relações binárias que se estabelecem, temos o habitar – a questão da clareira heideggeriana, de um pensamento de si que abre, com o fechamento do hábito, da repetição desatenta. Interessou-me olhar para essa desatenção na repetição dos espaços da EN10 e tentar pensar, a partir daí, que tipo de clareira surgiria.

No meu caso particular, interessa-me a relação constante de construção que temos com o espaço. Inicialmente, fui em busca de traços dessa construção constante num espaço que já não era o meu, por assim dizer – dei aulas em Vila Franca de Xira até 2010 – para tentar uma espécie de auto-arqueografia pela pesquisa dos percursos que fiz na altura em que lá dava aulas. Esta ideia do vestígio, da proximidade com os elementos registados (é curioso que fale de espaço e paisagem e território e nunca tenha planos abertos, mas sempre vestígios de coisas que fui encontrando no caminho) serve de mote para uma espécie de reconstrução do espaço. Ajudou que a zona onde fui primeiro, Alhandra, estivesse em obras porque essa obra, por um lado apagou o pouco que poderia restar da memória da minha passagem por lá e, por outro, levou a que começasse formalmente a pensar em todo o espaço como uma construção contínua. Presente e memória, experiência presente e vestígio, presença na duração e fragmentos do espaço, tudo contribui para um feedback loop que é a obra: um eco, no tempo, da minha construção de presença ali.

 

Vídeo: Fernando Brito

 

FB - Depois de uma fase de vários anos em que operei exclusivamente no campo da fotografia, o meu trabalho começou por evoluir no sentido de potenciar vários cruzamentos com o universo do cinema de cariz experimental e na necessidade de pensar a imagem em movimento, através da sua capacidade de promover intersecções com várias correntes do pensamento contemporâneo, e da sua capacidade de se assumir como uma praxis em constante diálogo com as outras disciplinas artísticas.

O meu contributo no contexto da Invenção da Amnésia, o projecto Caminhos Vagamente Circundantes, surge da necessidade de estabelecer novas ancoragens sobretudo no que diz respeito à intersecção entre as práticas performativas, o cinema experimental e a instalação audiovisual. Tomei como ponto de referência o conceito de “ lugar praticado” de Michel de Certeau , no qual ele alude ao acto de caminhar como uma construção de singularidades. É desse modo que entendo o acto de atravessar o espaço como um acto que testemunha as transformações e metamorfoses no território, mas acima de tudo, um acto que constrói enunciados e discursos através de uma temporalidade associada à gestualidade e ao movimento no sentido da criação de zonas de tensão entre gesto e corpo, experiência e representação. De alguma forma tento igualmente recuperar alguns dos conceitos e práticas da psicogeografia e trazê-los para o contexto contemporâneo. É nesse sentido que o carácter errante do personagem dos filmes foi inspirado em Diógenes de Sínope (424 - 323 A.C.) e na Alegoria da Vela que lhe é atribuída: este personagem caminha com uma lanterna acesa em plena luz do dia numa procura incessante por algo que não sabemos o que é. Mas é nesse carácter absurdo e paradoxal que é incorporada a ideia da acção de caminhar, e da procura como ato político e poético.

JH. Fernando, convocas um conjunto de referências importantes para entender as questões contemporâneas da representação e paisagem: por um lado, a Psicogeografia, na génese uma ferramenta estética avant-garde de forte pendor político, e um conceito central com que Guy Debord argumentou o Situacionismo, através da ideia do “vagueante” urbano, na intersecção entre Geografia e Psicologia, um acto criativo, e de rebelião contra a autoridade e voracidade urbana, mas também como um destilar de ambiências, impossíveis de quantificar por outros métodos, que afectam as emoções e o comportamento do indivíduo. Referes-te também à Fenomenologia, através de Certeau, um outro herdeiro da Psicogeografia, em que este tenta perceber como é que se navega, de modo inconsciente, na rotina diária, onde o visível é mais do que a mera condição cultural daquilo que se vê (Cosgrove, por ex), mas que é também condição do Ser, ou seja, sem Ser não há mundo. Entre Estruturalistas e Pós-Estruturalistas, uma batalha de grande importância, onde o foco nem é apenas no individuo, ou na estrutura em que ele se (de)forma, e onde o visual é mais do que representação, projecção, ou contemplação distanciada. Curiosamente, num dos teus filmes usas um plano bastante distanciado, quase panóptico e panorâmico, da ideia de vaguear urbano que parece contradizer Certeau, pois creio que ele afirma que o “vaguear” se faz ao nível do solo, da proximidade, (espero não estar a dizer nenhum disparate). Isto levanta várias questões, importantes para quem produz e para quem observa representações visuais da paisagem: o que é a paisagem, o que é que está a ser representado na mesma, qual o teu papel? Por outro lado, essas questões colocam-se a ti próprio, em que essas referências “implicam” contigo, no teu modo de ver, de ser, de dar a ver?

 

FB - As várias referências autorais que convoco para o meu trabalho são conceitos ou noções que peço emprestados, e que passam por processos de transformação ao longo da produção da obra. Toda a reflexão é feita no, e do, interior da obra. Já indiquei numa pergunta anterior a importância do conceito de lugar praticado do Michel de Certeau e a forma como se liga com outras referências que convoco. Estou interessado na reflexão crítica a partir das teorias e práticas culturais da psicogeografia e da geopoética, e na tensão que se estabelece entre os aspectos metafóricos e uma abordagem de cariz mais documental na representação do território.

No que diz respeito ao filme que referes, foi muito importante estabelecer uma articulação entre o regime de temporalidade do corpo que atravessa o território, a circularidade, e o carácter orbital dessa deslocação, a repetição desse trajecto ao longo de um dia ( foi efectuado cinco vezes ao longo de um dia) e as várias interferências não programadas que cruzam a acção principal. O Prof. António Sousa Dias referiu, numa das sessões do Ciclo de Conversas da Invenção da Amnésia, a escrita de uma composição musical como a organização de um território temporal, uma referência que achei muito interessante. Aqui, tratando-se de um território espacial, os regimes de temporalidade adquirem uma importância fundamental no processo. São ciclos que se vão desdobrando em mais ciclos, existe uma rítmica presente nas acções. Cada lugar tem a sua própria rítmica. Entendi ser necessário encontrar um ponto de vista suficientemente amplo de forma a que a (quase ) totalidade do trajecto fosse visível. Interessava-me que o percurso fosse filmado na sua plenitude, sem recurso a cortes, em tempo real. O gesto de caminhar, a temporalidade do corpo que atravessa o território, as várias escalas de aproximação e de distanciamento, de aparição e desaparição do personagem, as interferências não programadas e a utilização do som em fora de campo, tudo isso cria uma rítmica. Foram essas algumas das premissas que estiveram presentes na concepção desse filme de cerca de 43 minutos Interessam-me os lugares como eventos espaço-temporais onde convergem diferentes temporalidades, como espaços heterotópicos, usando a terminologia do Michel Foucault. Quando pensei no título para o projecto.(Caminhos Vagamente Circundantes) lembrei-me de uma obra do Jorge Luis Borges, “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam”, um conto labiríntico onde a hipertextualidade e a coexistência de várias temporalidades estão presentes em toda a narrativa. São questões que tenho em mente sempre que penso nas articulações entre as várias componentes do projecto.

Só para terminar: os situacionistas não estavam propriamente interessados na representação em modo tradicional. É claro que produziram obras bastante importantes, nomeadamente os chamados “Maps of Influence” (p. ex. “The Naked City “do Guy Debord). Mas estavam mais interessados em colocar essas obras ao serviço de um conjunto de tácticas e estratégias que produzissem um questionamento da urbanidade e da cidade contemporânea. O projecto situacionista colapsou, como muitas outras utopias. Mas é interessante verificar que o seu legado continua a influenciar muitas áreas do conhecimento, com particular destaque para as intersecções entre a geografia não representacional, (na qual se inclui a geopoética) e as artes. Sendo alguém que está por detrás de uma câmara estou interessado em explorar algumas possibilidades e hipóteses da representação que emanam da psicogeografia . Mas não me sinto preso a nenhum conceito em particular. Os conceitos interessam-me como catalisadores de processos no contexto da produção da obra e da investigação artística que decorre da mesma.

JH. Nos estudos visuais contemporâneos é dado relevo à pesquisa artística e à investigação, a qual se prolonga por vezes através de “residências artísticas”, um termo que empregam para definir esta vossa aproximação em colectivo. Que metodologias de investigação suportaram as vossas abordagens?


MR - A utilização do termo residência artística, para nós, serve sobretudo para salientar um regime de temporalidade, o da duração, no sentido Bergsoniano, que caracteriza este projecto. O pensamento, a criação de ideias, a criação das peças, vão acontecendo ao longo do tempo. Não é um conjunto de trabalhos que são criados uma vez e depois circulam, é uma circulação por um território que produz trabalhos ao longo do tempo. Para este efeito, definimos três campos que surgem em articulação: um campo de experiência, onde cada um vive a sua estrada e reflecte sobre esse viver; um campo de expressão, onde se criam as ideias e se produzem as peças que lhes dão forma; e um campo de articulação, onde reflectimos colectivamente sobre a articulação dos trabalhos individuais. Isto permite a criação de uma malha colectiva – chamamos-lhe a teia de expressão – que se alimenta das tensões entre trabalhos e autores para reflectir a polissemia natural do espaço em que vivemos.


NA - Alguma da pesquisa que fiz relacionada com o trabalho que desenvolvi incidiu acima de tudo sobre a história e traçado da estrada. À medida que o projecto foi avançando e as imagens foram surgindo, interessou-me saber um pouco mais acerca dos temas que fotografei e que acabaram por fazer parte do corpo principal do trabalho: Desenvolvimento urbanístico ao longo do eixo Almada – Fogueteiro e história da Lisnave e implicações que teve no tecido social e económico da zona.


FB - O meu processo situa-se nesse vasto campo que se convencionou designar como investigação artística. Uns dias antes da inauguração na Casa dos Cubos participámos na 2ª conferência RIACT, ( http://riact.belasartes.ulisboa.pt/n-2/ ) uma publicação dedicada à investigação artística, coordenada pelo Prof. José Quaresma da FBAUL., ao qual recorro a partir da sua afirmação “a investigação artística é uma floresta com muitos caminhos”. A partir da noção de pluralismo metodológico concebido por Henk Borgdforff e de protótipo contínuo de Denise Ziegler a minha abordagem caracteriza-se por um processo de desdobramento constante a partir da produção da obra. Esse desdobramento coloca em tensão as noções de mapeamento como processo e mapa como resultado tornando visível o processo de pensamento e realização como forma de produção de conhecimento. Desse modo, a experimentação, a interpretação e a análise entrecruzam-se no processo de investigação.

 

 

Imagem: Miguel Rodrigues



JH. Miguel, mencionas anteriormente a experiência através da En10 enquanto uma dimensão de hábito, de rotinas, onde a memória é o mecanismo que permite a repetição, e ao mesmo tempo a possibilidade de dissecar essa repetição, de repensar o hábito e a rotina, uma questão importante da Fenomenologia. Pode-se intuir também uma vocação terapêutica, ou de desenvolvimento pessoal, através deste processo, como algo que vai além dos tropismos visuais e artísticos? Como é que esse processo, algo analítico, acontece, e como é que impacta o sujeito, uma vez que parece ser uma interacção que conduz a mudanças no sujeito?


MR - Quando era puto, costumava comprar o passe da Costa da Caparica nos meses de Verão. Acordava ao meio dia, comia, e ia para lá, depois voltava na última camioneta. Uma vez, num desses trajectos, deparei-me com a seguinte frase, escrita com um marcador nas costas do penúltimo banco, ainda daqueles de plástico, laranjas:

“Nós dar, darmos, mas levar que nos fartáramos”

Não sei se ainda não era fotógrafo na altura ou se apenas ignorava essa condição trágica em potência. O facto de me lembrar tão vivamente disto, mais de vinte anos depois, talvez dê aqui uma boa pista. Sei que já pensei pegar num marcador e ir escrever esta cena outra vez para poder fotografar. Ainda por cima, agora que penso melhor nisto, acho que isto até aconteceu num dos ramais da EN10! (se a imagem aparecer no projecto, já sabes de onde veio a ideia)

Interessa-me cada vez mais esta cena de, por força deste acesso constante e imediato a “toda” a informação, nenhuma imagem, nenhuma ideia, nenhum gesto poder sair sem nos ser reciprocado por todas as épocas. Há um personagem de O Gladiador que às tantas, diz que as nossas acções ecoam na eternidade. Agora, parece que esse eco nos é devolvido e abafa tudo o que fazemos: a tragédia nietzscheana ganha um travo tragi-cómico: Estou aqui ao computador a ver a imagem da montanha, magnífica, imponente, individualizante, uma espécie de Magritte a olhar para o Friedrich. Ao soltar o meu grito de liberdade, a merda do assistente do Windows - que já nem dá para desligar - devolve-me logo todos os gritos de todas as montanhas de todas as épocas a invadir, e a tornar cada vez mais comprimida a minha solidão dramática.

Em O Livro da Consciência, António Damásio distingue dois tipos de memória, a memória factual e a memória de procedimento. Essencialmente, diz-nos que, ao recordar, por exemplo, uma casa em que tenhamos vivido, a primeira dá-nos uma informação factual, genérica, sobre a casa: o número de quartos, a localização das coisas, etc, e a segunda, dá-nos as relações que mantivemos nela. À partida, uma e outra estão correlacionadas. As coisas e a sua localização contam histórias, trazem memórias de quem as trouxe, de quem as usou, etc. No entanto, há uma pergunta que fica por fazer: qual é o papel da fotografia neste equilíbrio entre as duas memórias? Para lá de quem as fez e de quem conhece as relações que quem fez estabelece, como é que conseguimos passar esse lado do procedimento para um público? Esta questão tem-me interessado, sobretudo, no papel que a fotografia tem tido na percepção e na organização do espaço e, com isto, da nossa acção nele. No limite, e na medida em que a nossa existência se dá em relação com um “exterior”, podemos até falar no papel da fotografia na definição do sujeito a partir das suas relações com o espaço. Há duas questões – ou dois conjuntos de questões, para ser preciso – que considero importantes para isto.

 A questão da verosimilhança, aliada à questão do distanciamento, que te permite ter acesso visual a cada vez mais coisas, mas, pela própria condição em que tas mostra, também te mantém à distância delas. Isto dá-se a vários níveis. Estamos distantes no espaço: a imagem mostra-te algo que não está ali – no limite, está entre ti e o que mostra – é interessante rever as demonstrações de Brunelleschi a este respeito; estamos distantes no tempo – o noema da fotografia de que fala Barthes em A Câmara Clara; e estamos distantes na forma como a imagem nos permite experienciar aquilo que representa – talvez como corolário das duas distâncias anteriores.;

A questão da forma como constituímos as nossas memórias e, a partir daí, a forma como o seu armazenamento condiciona a nossa acção. Aqui, interessa-me pensar o que é que focamos naquilo que pretendemos registar como memória. Na constituição da memória de procedimento, o Damásio foca o lado somatossensorial e o lado motor da constituição das memórias: a coisa organiza-se a partir de e para a reconstituição do movimento, ou seja, guardamos imagens da nossa relação performativa com as pessoas, os espaços e as coisas. Registamos a interacção, e não apenas a coisa em si. A fotografia, parece-me, tem evoluído no sentido de representar de forma cada vez mais clara e fidedigna, mais verosímil, o lado da memória factual de que fala o Damásio. E aí, vem uma questão que me tem alimentado o pensamento: como é que a fotografia pode colocar-nos perante o lado procedimental da nossa experiência do espaço? Como é que podemos fugir, tanto a uma ideia de imagem síntese, como algo cuja própria obrigação de pensar implica ainda mais afastamento e remete para uma ausência de movimento como condição de leitura, como à cena do casal no anúncio que, sem pensar, regista os passos do filho recém-nascido (“O Primeiro passo do Joãozinho!”, “O segundo passo do Joãozinho!”, “O trigésimo terceiro passo do Joãozinho!”, “O Centésimo quadragésimo…) que não tem validade para além dos pais babados que fazem o registo?

De algum modo, associo isto às tensões que o Rancière identifica na “imagem pensativa”, em O Espetador Emancipado, apesar de, na verdade, ele não se referir a esta questão da memória de procedimento na fotografia. As coisas que registamos ocorrem no espaço e no tempo. Depois, o próprio registo implica um corte com essa espacialidade (no enquadramento) e com essa temporalidade (no intervalo em que a luz é retida na superfície sensível em que a registamos). No desenvolvimento do Rancière, e na ligação que este faz com o Barthes e o Benjamin, continuamos a ver uma relação, primeiro do fotógrafo e depois do espectador com um estabelecimento de um carácter simbólico de leitura, do espaço e da situação, por parte do fotógrafo, e da imagem, por parte do espectador, que assentam nessa característica de estabilidade, fixidez e nitidez. Mesmo quando o autor indaga sobre a direcção do olhar do condenado à morte de uma das imagens, fá-lo a partir da sugestão do fotógrafo; daquele instante que parou, que ficou distante de nós em tudo. A mim, tem-me interessado cada vez mais a questão que já referi e que ali não está mencionada: a perda do movimento e da interacção no movimento. Para além das distâncias, muito burguesas, com que as imagens fotográficas nos permitem observar a realidade, há ainda esta pequena questão do movimento: estamos parados a olhar para a imagem que fixou uma cena qualquer. Toda a cena do white cube é pensada para que não haja distracções a um ato puro de entendimento; em que, discretamente, se apaga todo o carácter vivo daquilo que é vivo: o movimento e as relações através do movimento, através de um disembodiment cartesiano. Voltando à questão das duas memórias do Damásio, temos aquilo que é, no fundo, a minha questão de investigação: como devolver o movimento no espaço ao público? Se é verdade que essa memória de procedimento é guardada como um registo das performances, então estamos a deixar uma parte muito importante daquilo que é, para nós, a memória, num sentido biológico, de fora daquilo que entendemos como garantes da memória no sentido cultural. Claro que aquilo que estou a passar ao público não é a experiência do meu movimento e do meu mapeamento do espaço. Esse é meu, é a minha forma de ser eu através da experiência que faço do espaço. As minhas imagens, e a forma como as faço, são esse meu mapeamento e esse meu registo de movimentos. Mas, ao trazer à leitura do trabalho implicações, seja de movimento – teres de te deslocar através do espaço em que as obras estão expostas para as poderes entender; seja de intervenção – poderes mexer e reordenar a disposição das imagens; seja de imersão – seres colocado naquele espaço como um espaço de experiência em si mesmo antes de ser um espaço de representação do que não está lá, tento passar para o público, não a representação de um espaço, mas uma relação de experiência no espaço. Deste modo – espero eu – resgato algum desse espaço motor e somatossensorial para a fruição do trabalho e para a constituição de memórias a partir deste.

Voltando aqui ao computador, onde estou sentado a escrever sobre a importância do movimento pelo espaço… A condição em que todos nos encontramos veio tornar ainda mais clara esta questão de uma relação quase opressiva da informação com o sujeito que a absorve: cada vez temos acesso a mais informação e menos escape, no que diz respeito à nossa acção no mundo, para essa informação que recebemos. Esta cena de estar sentado em frente a um ecrã que me dá acesso a tudo é uma questão relativamente nova que tornou óbvio esse desequilíbrio. Talvez a fadiga pandémica tenha tanto do efeito desse excesso de informação, da compressão do espaço-tempo de que falava o David Harvey e das questões Virilianas da velocidade, como da própria condição da pandemia. Mexemo-nos cada vez menos num espaço cada vez mais atolado de informação. Torna-se importante pensar a influência do fotográfico neste processo.

 

(©2021 Todos os direitos reservados. Texto: João Henriques/CEFT & Nuno Andrade, Fernando Brito, Miguel Rodrigues. Imagens: Nuno Andrade, Miguel Rodrigues. Vídeo: Fernando Brito)

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