Centro de Estudos em Fotografia de Tomar - Fotografia e Território

Paisagem e Destruição: conversa com João Mota da Costa.

Entrevistas
Fotógrafo: João Mota da Costa

"Tal como uma arma, a fotografia desde que apontada para o local certo e divulgada da forma correcta pode ser a maior arma contra as agressões ambientais."

 

 

Entrevista conduzida com o autor, por ocasião da exibição do projecto PIN na Casa dos Cubos (CEFT). 


João Henriques: A tua carreira profissional está ligada à Medicina, algo que, aliás, transparece nalguns dos teus trabalhos mais recentes. Como é que foste da Medicina à Fotografia, em que medida é que a tua prática profissional como médico se cruza e influencia a Fotografia, ou vice-versa?

 

João Mota da Costa: Comecei a fotografar antes de entrar em Medicina, e nos primeiros anos da Faculdade mantive ainda uma actividade fotográfica intensa, na altura com alguns prémios em concursos de fotografia e exposições colectivas de fotografia. Depois a actividade profissional tornou-se muito intensa e a fotografia foi ficando para segundo plano, até que em 2010, com a redução que impus a mim próprio na actividade profissional, passei a voltar a ter tempo para a fotografia de autor. Um ponto interessante no meu percurso profissional: a minha especialidade é a de Cirurgia Plástica, embora a área a que me dedique atualmente em exclusividade seja a Cirurgia da Mão, mas em qualquer delas a fotografia tem um papel muito importante em documentar o antes e o depois.

 

JH: O teu percurso parece dividido em 2 fases, entre aquilo que fotografavas e como o fazias, e a tua prática pós 2010. O que é que mudou em termos da tua aproximação, em que medida a transição entre o analógico e o digital foram determinantes também nesse processo?

 

JMC: Quando iniciei o meu percurso fotográfico era o preto e branco, com as longas horas de laboratório, depois a côr e o Kodachrome, tendo posteriormente emergido o digital . A rápida evolução e o experimentalismo entusiasmaram-me bastante em acompanhar este novo registo de imagem (digital) sem nunca largar o analógico. Ainda hoje fotografo nos 2 formatos com camaras de 35mm e médio formato, a preto e branco e a cores. Talvez a verdadeira alteração de relevo tenha sido a utilização do grande formato (4x5) a partir de 2011 que utilizei de forma intensiva até 2019, tendo neste momento voltado aos 35 e 120mm, deixando o 4x5 apenas para projectos muito restritos.

 

 

 

JH: Neste projecto fotográfico intitulado PIN, realizado entre 2012 e 2015, e que estás a expôr agora aqui no CEFT – Casa dos Cubos, o teu interesse estético recaiu num aspecto político e económico do território. O que é que determinou a abordagem aquela área da Lagoa de Óbidos?

 

JMC: Este projeto começa porque tinha comprado uma casa ali perto, no Condomínio Bom Sucesso, e comecei a passar lá longos períodos de férias e fim-de-semana. Foi nos diversos percursos a caminho da lagoa e da praia que a partir de 2012 comecei a notar a devastação de determinadas áreas da mata ao longo de diversos trajectos. Tendo só uma ligeira suspeita do que se estava a passar, uma vez que também naquela zona muito pinheiro é arrancado para colocação de eucaliptos, resolvi começar a fotografar o que se passava.

Apercebi-me que esta devastação se devia à construção de um condomínio privado, quando começaram a circundar as áreas que iam devastando com arame e colocaram a tabuleta com o nome do respectivo condomínio. Já andava a fotografar este, que se manteve apenas com um campo de golf e um hotel (falido) até 2020, até que um segundo surgiu 2 anos depois e arrasou o que restava de paisagem, e manteve-se também só como campo de golf até ao ano passado.

 


JH: Tiveste conhecimento da reacção dos residentes locais acerca do assunto? Houve outro tipo de investigação?

 

JMC: Claro que sim, a população local estava dividida em 2 grupos: aquele que criticavam estes projectos, a sua maioria, com os membros do projecto “Defender o Bom Sucesso”, e a minoria, onde se enquadravam os donos de alguns restaurantes, esperançados que isso lhes proporcionasse algum beneficio. Na parte documental servi-me apenas dos decretos lei referentes aos Projectos de Interesse Nacional “Pin”, sobre o seu conteúdo e áreas envolvidas, assim com aos decretos lei sobre as área protegidas da nossa costa.

 

JH: As imagens desta série são elucidativas de uma área de costa, povoada por pinheiro, que foi totalmente arrasada com um determinado fim, e embora isso não seja nelas ainda claro, hoje em dia é lá visível um empreendimento turístico, com campo de golf, hotel, residências, etc. De que forma sentes que este tipo de fotografia de paisagem é efectiva? Consideras que o é enquanto activismo e denúncia?

 

JMC: A opção por fotografar e mostrar este trabalho, deu-se também pelo entender que os chamados PIN (Projectos de Interesse Nacional, serviam antes de mais os interesses económicos privados, que se sobrepunham ao interesse ecológico e patrimonial público. Torna-se por este motivo um projecto paisagístico de denúncia e activismo ecológico, em que inclusivamente confrontei o presidente da Câmara de Óbidos sobre se o dinheiro para o condomínio que ele construi no Arelho não veio das luvas que recebeu pela permissão daqueles outros PIN.

 

 

JH: Há nestas modalidades de fazer territórios ecos do que foi alguma construção dos anos 80, onde parece ter imperado uma onda de projectos de construção medonhos, impensados, possivelmente aprovados em conluio entre Presidentes de Câmara e construtores civis. Esta tensão entre a procura por investimento imediato, o desenvolvimento regional, os interesses particulares e eleitorais parece continuar a não ter um fim à vista. Curiosamente, o Interesse Nacional dá, por vezes, lugar à ruína nacional, económica e literalmente, deixando bastante matéria para o fotográfico, tornando a ruína um elemento estético central e apetecível. De que modo se poderia tornar a Fotografia, sobretudo neste espectro, mais efectiva em termos de defesa ambiental, racionalização dos recursos, etc?

 

JMC: Tal como uma arma, a fotografia desde que apontada para o local certo e divulgada da forma correcta pode ser a maio arma contra as agressões ambientais. È apenas necessário que os fotógrafos o queiram e principalmente que os meios de difusão colaborem nessa divulgação para que a cada dia mais pessoas se revoltem contra os crimes ambientais, a corrupção activa e passiva e a destruição do património da humanidade.

 

JH: Este registo da paisagem em modo topográfico, empregando-se o termo topográfico enquanto influência de um certo modo de ver com influências americanas, nomeadamente das fotografias de Timothy O’Sullivan, e posteriormente das dos fotógrafos que participaram na exposição New Topographics, parecem, por um lado, resistir como contraponto a uma estética imediata, apelativa dos sentidos e das emoções, e por outro, parecem ser, geralmente, um campo da fotografia mal entendido, ou mal apreciado. Não sei se concordas, mas que tipo de ameaças, e oportunidades, são específicas desta abordagem, e da sua recepção estética e crítica? Por outro lado, que influências foram marcantes para a realização deste projecto?

 

JMC: Talvez veja este trabalho mais ligado a alguns fotógrafos da escola Alemã de Dusseldorf como Gerhard Stromberg e Simone Nieweg. Em relação ao primeiro, a forma rigorosa e apaixonada como fotografa a paisagem tradicional de forma útil e não estética, símbolo do impacto do homem no seu meio ambiente. Ou ainda como ele nos lembra neste texto de Karl Marx;  " Pela primeira vez, a natureza torna-se num simples objecto para uso  da humanidade, unicamente uma questão de utilidade; deixa de ser reconhecida como uma força por si só". Relativamente à segunda a forma como captura um mundo que parece destinado à extinção, onde as imagens estão vazias da presença humana, mas em todas elas é evidente a sua intervenção. Estas as minhas imagens contém um lado estético, que como fotógrafo e cirurgião plástico não posso deixar de lhes imprimir, mas a minha principal preocupação foi documental. Todavia penso que o aquilo que as fará resistir ao tempo será a estética, e uma vez que a memória do homem parece ser muito curta, torna-se necessário activá-la através de imagens fotográficas que lhes chamem a atenção para o que foi o lugar, o território, e aquilo em que se transformou.

 

 

 JH: Pareces ter usado uma retórica estética ligada a um certo estado do tempo metereológico para construir sentido? Se concordas, de que modo é que achas que isso serve esta série de imagens?

 

JMC: Há dois motivos para que as fotografias tenham sido feitas com este ambiente de céu cinzento, algumas vezes nublado: em primeiro lugar o tempo característico daquela zona, mesmo no verão muitas manhãs são cinzentas até ao início da tarde; em segundo lugar, esta luz sem sol directo torna as cores mais destacadas e contrastadas com o cinza do céu valorizando o tema fotográfico, que se quer envolto numa certa calma e tristeza que contraste com a agressividade do crime cometido.

 

JH: Esta questão é algo especulativa, mas dada a tua dupla formação talvez possamos fazer alguma digressão através do visual: quando se dá um acidente rodoviário, em geral a circulação abranda, parece existir um desejo muito grande em ver; noutro campo, parece haver determinadas realidades em que a tendência é mais olhar para o outro lado, se é que me faço entender, como neste caso específico, em que se pode ver um abate generalizado de uma área protegida devido à sobreposição com os interesses económicos. Que diferentes tipos de ver são estes, ligados ao desejo ótico, ao sublime, à importância ou hierarquia visual em detrimento de outras?

 

JMC: No primeiro estamos a falar do desejo mórbido dos humanos comtemplarem o sofrimento e a desgraça alheia, no segundo, no olhar para o lado e no aceitar desculpas infames para não ver, tudo o que o dinheiro pode comprar, e saber que os poucos que se revoltam não têm a expressão necessária para alterar o sistema. Mas devemos manter o nosso ponto de vista, e de forma corajosa olhar para aquilo que deve ser visto, e denunciá-lo na esperança de que cada vez haja mais pessoas a olhar para o sítio certo e a dizer basta.



JH: Fala-se bastante na fotografia como modelo privilegiado para a captação da identidade, pessoal, territorial, etc. Em face desta série, quase próxima da “cena de um crime”, que tipo de memória colectiva é que se pode inferir da fotografia de paisagem?

 

JMC: Segundo Halbwachs (1990), “a memória coletiva tem seu ponto de apoio nas imagens espaciais”. Estas influenciam a formação, manutenção e evocação das nossas lembranças. O nosso meio ambiente traduz, simultaneamente, a nossa identificação e a dos outros, já que as formas dos objetos têm, para cada um, significações particulares. Isso dá-se porque o lugar recebe a marca de cada população – cada especto, cada detalhe desse lugar em si mesmo tem um sentido que é inteligível para os membros de cada grupo. Assim, quando um grupo vive muito tempo em determinado lugar adaptado aos seus hábitos e visão, não apenas os seus movimentos, mas também seus pensamentos regulam-se pela sucessão de imagens que lhes representam os objetos exteriores, é esse jogo de memória, feito de lembranças e esquecimentos, que é preciso manter através da imagem fotográfica para que a lembrança se sobreponha ao esquecimento.

 

 

 

(Todos os direitos reservados. Texto João Henriques/CEFT & João Mota da Costa. Imagens João Mota da Costa)

 

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