Entrevista conduzida com o autor, por ocasião da exposição na Casa dos Cubos, entre 2 de Abril e 8 de Maio de 2022.
João Henriques - Da Arquitectura à Fotografia, chegaste de Palermo a Lisboa em 2009 para estudar, e continuas a trabalhar entre Itália e Portugal. Começo por te perguntar acerca das origens da tua ligação entre Arquitectura e Fotografia. Talvez, a partir da tua experiência, possamos entender e aprofundar a proximidade que existe entre ambas as disciplinas.
Sebastiano Raimondo - Desde quando comecei a estudar na Faculdade de Arquitetura, a fotografia foi um instrumento, entre os outros, para recolher indícios de uma qualquer realidade expectante. Comecei arquitectura em 2001 porque queria ser arquitecto, a faculdade de Palermo era um lugar muito estimulante e plural, cada ano letivo era possível escolher cadeiras optativas que iam desde a filosofia contemporânea até artes visuais, como cinema e fotografia. Mas ouve um momento onde eu percebi que a representação no projecto não era só um instrumento de comunicação entre arquitectos. Antes de me perguntar sobre questões da linguagem, tinha percebido que a representação tinha o poder de antecipar uma realidade tendo como ponto de partida a realidade mesma. Ou seja: tudo que se transformava em símbolos apresentava qualquer coisa que era capaz de se realizar concretamente. Quando em 2005, no atelier de Pasquale Culotta, onde trabalhava, vi nas paredes umas fotografias dum fotógrafo chamado Giovanni Chiaramonte, pensei que a fotografia era capaz dum discurso independente do objecto arquitectónico que estava a mostrar, vi uma beleza inexplicável, intensa e frágil, que precisava de mais atenção e cuidado para ser compreendida. Quando o Chiaramonte começou a dar aulas de fotografia decidi escolher essa cadeira, sentei-me nos últimos bancos a seguir as aulas em silêncio por alguns anos. Em 2009 fiz o exame de fotografia e pouco depois comecei o programa Erasmus em Lisboa, convicto que iria acabar o meu curso com uma tese em fotografia.
Portanto, eu acho que a proximidade entre arquitectura e fotografia está no projecto. As duas são disciplinas, ambas tem um método, e quando resultam em algo de concreto são o resultado dum processo complexo de encontro entre o autor, a realidade e os vários acidentes e compromissos ao longo do percurso. Ou seja, as duas tem como produto final algo possível ou necessário, uma resposta que pode não ser definitiva (melhor diria uma pergunta), algo que faz parte dum projecto mais complexo de relações que o autor tem no contesto em que opera.
JH - Creio que um dos campos mais interessantes de explorar, da intersecção entre Fotografia e Arquitectura, diz respeito a questão da função “reprodutiva” da Fotografia, em que, através de um valor indexical a Imagem mediatiza a Arquitectura objectivamente. Que concordâncias, ou objecções, se podem levantar perante esta afirmação?
SR – Eu acho que a maioria da fotografia de arquitectura que se vê é uma parte infinitamente pequena da fotografia e da arquitectura. Não se pode separar o índex da fotografia, ela reproduz uma face da realidade ao longo da direção escolhida do ponto de vista, mas trata-se só duma pequena parte da experiência no real. Melhor se pode dizer que a fotografia é uma metonímia: está a substituir uma parte da realidade com uma superfície, esta substituição tem de objetivo a escolha dum sistema fotográfico (câmara e lente), duma película ou sensor digital, dum corte, duma escolha de tratamento da cor, da matéria dessa superfície ou de pixels que se transformam em imagens visíveis pelos écrans de vários dispositivos. Eu acho que ao longo do processo, e através do método de cada fotógrafo, a fotografia começa por ser índice e passa através de várias fases até chegar ao ponto mais alto que simbolicamente corresponde á representação. Não estou a falar duma fotografia, mas dum projecto fotográfico feito de montagem em sequência de várias imagens, dum conto por imagem, dum pensamento capaz de produzir um discurso tanto diferente quanto várias podem ser as condições onde vem apresentado e quanto vários podem ser os leitores que o querem ler. Há uma objetividade na Arquitectura, por exemplo na linguagem dos desenhos e no cálculo das estruturas, assim como na técnica fotográfica, que fica escondida a quem irá visitar e viver os lugares. Fotografia, arquitectura, cidade e paisagem são ligadas todas elas, num resultado complexo de transformação simbólica da realidade. São até o resultado inconsciente das mesmas pessoas que a vivem, cujo mecanismo de transformação é pela maioria totalmente desconhecido. A mesma reprodução é uma transformação, ao reproduzir um edifício estamos a transformar escala, matérias e muito mais em outra coisa. A reprodução de uma fotografia em copias idênticas era pouco comum, tanto no campo argêntico quanto no digital e hoje no seu uso em massa não tem matéria e ocupa um espaço de limites desconhecidos. Enfim eu acho que Fotografia e Arquitectura criam lugares e esses se cruzam ocupando às vezes superfícies e tempos comuns.
JH - A ideia que me surge das imagens expostas na Casa dos Cubos, especialmente as que dizem respeito ao projecto envolvente à CRIL, é que parece ter existido um interesse específico em fotografar determinados edifícios, como se a Arquitectura fosse o ponto de partida, que depois se alargou a outra confluência de ideias bastante mais ampla. Primeiro, qual foi o teu interesse naqueles edifícios, e depois, que outras ideias são essas que exploras através destes trabalhos?
SR – Aproveitei o programa Erasmus 2009/2010 para realizar o projecto “Uma Ponte”, escolhi os meus orientadores o fotografo Giovanni Chiaramonte e o arquitecto Paulo Tormenta Pinto, e quando construí a primeira maqueta da sequência achei que o projecto levantava perguntas sobre a relação entre fotografia e arquitectura. Decidi voltar para Lisboa em 2011, com um apoio económico da Faculdade de Palermo para fazer estudos no estrangeiro, e transformei a sequência de imagens em perguntas, que tratei com fotógrafos e arquitetos portugueses. Entretanto surgiu a oportunidade de trabalhar para um número da revista “Passagens” editada pela universidade onde fiz o Erasmus. Esse número era dedicado à CRIL, o título era “Paisagens Distantes, a CRIL uma Avenida Pós-moderna”, e tratava de arquiteturas que casualmente eram ligadas da linha que entretanto, estava a ser acabada da circular regional interna de Lisboa. Foi um acaso, mas como estava livre de interpretar o pedido a minha maneira decidi de fazer a quadratura do meu círculo. Uma resposta á tua pergunta pode ser no texto que escolhi para apresentar CRIL no site do CEFT.
Outra está no percurso que escolhi fazer desde quando me dedico a fotografia. O ponto de partida é o título da minha tese “Uma ponte, a fotografia como maneira de abitar e construir o mundo”. Uma ponte é metáfora para nomear a fotografia e a cidade de Lisboa. Metáforas não são as fotografias, mas a tese que constrói um lugar que habitei e posso visitar quando quero, uma ponte que me permite voltar nesse lugar a partir de qualquer outro sítio onde possa rever as fotografias.
Habitar é na minha resposta do olhar, o lugar que habito é aquele onde encontro o sítio para posicionar o tripé, abrir a porta do enquadramento que me permite entrar dentro da câmara, andar a procura da janela para ver fora e iluminar dentro. Este ritual é um possível ritual de construção dum quarto. Vários quartos compõem uma casa como várias fotografias um projecto, em outras escalas uma cidade e noutros tempos a paisagem. O retrato cabe dentro este pensamento quando o meu olhar que habita se espelha no olhar de quem me abre uma porta e me hospeda.
JH - Por outro lado, o teu restante trabalho sobre Lisboa parece não ter um roteiro definido, mas também não parece tratar-se de flanerie. Em que é que consiste?
SR – Como escrevi na pergunta anterior, os dois fazem parte do mesmo projecto “uma ponte, a fotografia como maneira de habitar e construir o mundo”. Este é composto por uma tese (a sequencia “Uma ponte”), uma antítese (a metodologia que surgiu na transformação das imagens em perguntas e os relativos encontros que teve com fotógrafos e arquitectos) e uma síntese final (a CRIL).
JH - Algo que me suscitou interesse é a tua hesitação em usar determinadas palavras, como periferia, planeamento regional ou urbanístico, para contextualizares algum do teu trabalho. Porquê essa opção?
SR – Planeamento regional e urbanístico são duas palavras ligadas a uma prática de ordem e organização do território. Enquanto periferia, mas também paisagem, tem outros significados apesar da prática específica do arquitecto, urbanista, paisagista, profissional e político que gerem e organizam espaços e a vida das pessoas. Também não gosto da palavra “identidade” sem ser ligada a palavra “diferença” por outras razões, mas aprendi a lidar com a palavra periferia há poucos anos, por causa duma colaboração num projecto académico nas Belas Artes de Palermo, onde dou aulas.
Periferia para mim, agora, é um sinónimo de limiar, de margem, e como qualquer linha é imaginária mas existe na representação dos mapas. Aprendi com a curadoria e redação do livro “Palermo Periferie” que um limiar é importante para determinar uma figura, como a CRIL determina a forma da cidade de Lisboa junto a margem do rio Tejo. A cidade sempre foi construída por limiares, sair fora desse limiar ajuda a ter perceção da figura inteira. Esse limiar na realidade não é só uma linha, mas algo que tem lugares e por sua vez outros limiares. Uma parte deste pensamento faz parte do projecto “Custodire Soglie – Palermo” (guardar limiares), agora exposto na cidade de Kiel na Alemanha, e tem a que ver simplesmente com a relação entre guardar, ver e seus limiares possíveis na construção da forma da cidade.
JH - Através da leitura das tuas notas escreves que a fotografia revela a posição do autor? O que se pode entender acerca do que essa posição revela?
SR – A fotografia é a projeção duma imagem que saiu da nossa cabeça no momento em que respondeu a uma imagem que veio do mundo la fora. Revelar é sinónimo de manifestar, a imagem fotográfica manifesta uma parte da experiência estética do autor. A sua posição fica marcada na imagem porque única, ninguém pode repetir, o mesmo autor ter repetido ou outros voltar a repetir a mesma experiência. Temos certeza que um fotógrafo esteve lá, num tempo e espaço, algo que está ligado verdadeiramente ao autor: o seu ponto de vista na direção infinita onde apontava a lente, a forma como o fotógrafo conseguiu ver através da fotografia - “item perspectiva” como conta o Panofsky significa “ver através de”. É uma posição perante o mundo, regista uma parte das coisas que o fotografo vê e dessas aquelas que decide mostrar. Posição pode acompanhar muitos adjetivos, um fotógrafo pode não querer mostrar posição nenhuma perante as coisas que olha, com certeza nessa posição há uma forma de cuidar e guardar pedaços do mundo, fragmentos de algo que existiu para construir alguma outra coisa. As vezes o autor desaparece e outros constroem a sua posição, ou um assunto de qualquer outro género a partir do índex presente na imagem.
Se as fotografias tivessem um código certo, era suficiente descodificar esse código para ter uma resposta certa. Até agora acerca da posição sabemos que perante uma imagem eu estou a ver pelo ponto de vista do seu autor.
JH - A fotografia enquanto veículo para a construção do real e a arquitectura também enquanto construção do real, parecem sucessivas camadas que proporcionam a criação de sentido. É curioso esse paralelismo entre o real – a arquitectura, e a representação - a fotografia, ainda que uma parte da arquitectura dependa de representações (maquetes, planos, desenhos, etc.) para se tornar realidade. Em ambos os casos, tanto o real como o representável se parecem fundir, pois parecem depender da atribuição, ou criação, de sentido, uma relação que implica não só imaginação, mas a ideia de que tudo pode ser uma representação. É o fim da diferença entre realidade e representação? A realidade só existe porque existimos como mediadores que lhe dá sentido?
SR – Eu acho que existiu uma realidade e existe um real, a diferença entre as duas é análoga a diferença entre espaço e lugar. Dizer realidade é como pensar que existe uma natureza incontaminada onde o homem nem pós os seus olhos em cima. Um espaço vazio da presença humana que no instante em quem o homem se posiciona, mede e atribui significado, se abre (como uma porta) para o real. A partir do momento em que o homem começou a atribuir significados houve uma transformação simbólica e diferença entre realidade e sua representação. Melhor seria falar de identidade e diferença: no limiar das duas há a atividade do fotógrafo e do arquitecto (em verdade toda a atividade humana). Um lugar que tem índex da realidade e a sua transformação ao mesmo tempo.
Não temos aceso a origem das coisas, temos a suas diferenças que nos revelam o início da atividade humana de transformação simbólica da natureza. “Uma realidade” (o real) não é a mesma coisa que dizer “a realidade” em termos absolutos: o real existe e continua a existir porque os homens “habitam”.
JH - Parece evidente nas tuas séries que apresentas a necessidade de se afastarem, quer da tentação das imagens sedutoras, quer de uma fotografia subjugada à arquitectura, inferior em possibilidade de representação. Corresponde essa ideia à passagem da fotografia de uma certa idealização estética da arquitectura para uma corrente mais “informal”, quiçá mais realista, em que o contexto importa? Por outro lado, a fotografia de arquitectura parecendo ser, maioritariamente, uma actividade de encomenda comercial, como é que os arquitectos respondem a essa tensão?
SR – Na maioria dos casos os arquitectos fazem aos fotógrafos a mesma pergunta que se faz ao fotógrafo no dia do casamento: umas imagens que representam a noiva, vestida de branco, perfeitamente arranjada, virgem e num estado de pureza que nunca mais irá ter outras imagens. Essas imagens da arquitectura representam a passagem necessária entre a vida em casa dos pais e a futura, em liberdade, fora de qualquer controlo do arquitecto. As imagens irão ser postas em bela vista em cima dos móveis, ou nas revistas, e irão ser a referência e comparação para qualquer outro discurso futuro. Acho isto da cidade e da arquitectura muito concreto e real, mas o meu projecto se posiciona na fase sucessiva onde eu sou uma parte dela e a hábito através da fotografia.
Não consigo dizer que aja uma corrente informal da fotografia de arquitectura: as minhas fotos continuam a ser arquitecturas e cidades mesmo depois ter abandonado a casa dos pais e o controlo do arquitecto. A parte onde andei pela periferia ao longo da CRIL (síntese de “Uma ponte”) trata do limiar como possibilidade de encontrar um traço que permite delinear a figura inteira, como qualquer outra prática artística figurativa.
Enfim eu acho que os arquitectos são muito mais emancipados do que se pode pensar pelos pedidos que fazem aos fotógrafos, até porque a prática deles é muito abrangente. O problema comum entre as duas práticas é lidar com a revolução dos medias e da comunicação ocorrida nas últimas duas décadas. Ainda não somos capazes de visualizar o problema e não há solução porquê não há uma pergunta certa. Do meu ponto de vista voltou uma básica questão antiga ligada ao “inconsciente tecnológico” (como diria Franco Vaccari), e uma triste homogeneidade de formas e conteúdos devido a falta de contextualização de qualquer percurso e assunto.
JH - Por falar em contexto, que não é apenas a paisagem em torno de, mas que se parece alargar à noção de território, algo entre o lugar onde as diferentes forças agem e a materialização dessa acção. Nesse âmbito podemos falar de um contexto social, económico, político, de uma outra arquitectura, sistémica, conjuntural ou estrutural mas em ambos os casos estruturante. Procuraste explorar algumas dessas questões, dessa arquitectura sistémica, nestes projectos?
SR – O desenho da CRIL juntou através duma linha os projectos que fotografei, mas o objetivo da sua realização era o de uma via rápida. O facto de ser tratado na revista “passagens” como um itinerário arquitectónico, mesmo que improvável, é um exemplo de como a cidade se expande e evolui ao longo do tempo e de como é possível criar discursos capazes de gerar mudanças. Nas palavras do professor Paulo Tormenta Pinto (director do projecto editorial no âmbito do doutoramento em “arquitecturas dos territórios metropolitanos contemporâneos”) a conclusão da CRIL em 2011 despertou a possibilidade de subverter a lógica de interpretação dos fenómenos urbanos. A sugestão das passagens parisienses do Benjiamin foi a metodologia para por em causa transversalmente assuntos da cidade e do território. Do meu ponto de vista, quando aceitei o pedido, esta metodologia ficava coerente com quanto tinha andado a pesquisar na minha prática fotográfica e na minha tese de mestrado. Pouco depois voltei ao assunto e o reelaborei de forma mais aprofundada, em ocasião de duas conferências e relativas publicações na revista Sophia da FAUP.
No fundo fotografar estes sítios foi como voltar a por perguntas á arquitectura e á cidade, atravessá-las como as passagens de Paris atravessam quarteirões e juntam realidades originariamente distintas, mas sobretudo foi como confirmar quanto a interpretação fotográfica é capaz de criar outros discursos e lugares diferentes. Cheguei ao texto do arquitecto Ettore Sottsass porque ele escrevia, na revista italiana Domus, a coluna “foto dal finestrino” (fotografias pela janela).
Andar na CRIL implica ver imagens pela janela do carro e este constrangimento me obrigou a pensar de sair desse “delírio”, havia algo que achei valia a pena ser guardado de forma diferente. Era preciso mudar a velocidade e procurar com calma os vários sítios onde posicionar o tripé. Uma referência desta ideia é o “Walking the high line” do Joel Sternfeld.
Quando falo de perguntas à arquitetura e à cidade, essas são nas fotografias e é como se fossem dirigidas a quem olha mais do que aos lugares. São lugares da fotografia, um arquivo, uma exposição, um livro ou uma revista: a dúvida, o estranhamento, o reconhecimento, o gosto e o desprezo são as respostas possíveis. Nas imagens alguém pode reconhecer assuntos sociais, económicos e políticos entre outros, mas tudo depende do contexto onde as imagens vivem, os tempos, onde vem mostradas e como são utilizadas.
Deixe o seu comentário