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Promessa e a Outra Margem - Entrevista com Stefano Martini

Entrevistas
Fotógrafo: Stefano Martini

"Existem infinitas possibilidades de abordagem e experiências sobre o mesmo lugar, por outro lado, nenhum dos lugares das fotografias foram inventados, estão todos lá, em constante modificação e cumprindo o seu papel na história e na sua existência. Acredito que o papel do fotógrafo passe por apontar caminhos, mostrar rastros e subentender que existe um mundo não enquadrado."

 

 

Entrevista conduzida com o autor, por ocasião da exposição na Casa dos Cubos, entre 2 de Abril e 8 de Maio de 2022.

 

João Henriques - Do fotojornalismo e trabalho editorial até este documentário de índole topográfica que apresentas agora na Casa dos Cubos, do Brasil para Lisboa, onde fixaste residência nos últimos anos, conta-nos um pouco do teu percurso como fotógrafo.

Stefano Martini - O meu interesse pela fotografia despertou-se cedo. Meu pai era um fotógrafo amador muito dedicado. Eu observava-o atento a fotografar, fotometrar, desmontar o equipamento para limpar, e aprendi todo esse ritual envolvido, assim como os conceitos básicos de exposição, diafragma e velocidade. Devo bastante também à minha mãe pela minha formação cultural. Sempre frequentávamos museus e novas exposições nos fins de semana, o que foi fundamental para minha construção pessoal. Portanto, comecei a fotografar jovem e sempre recorri a livros e revistas de fotografia e de diversos gêneros, em busca de referências e para perceber como tudo funcionava.

Formei-me em fotografia no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial do Rio de Janeiro (Senac RJ), onde obtive uma excelente base sobre técnica, equipamentos, iluminação, laboratório e edição, o que foi de essencial importância para seguir a minha trajetória profissional. Também licenciei-me em Design pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), que agregou-me tantos outros conhecimentos.Lembro-me de uma das primeiras vezes que consegui publicar fotografias na imprensa e receber por isso. Estava a voltar da escola quando vi que havia caído um autocarro no Rio Maracanã em frente a minha casa à época, felizmente sem feridos. Prontamente corri para pegar a câmera e produzi registos do acontecido. Foi a minha experiência no fotojornalismo. Outro momento importante foi o período em que fui assistente de uma agência de publicidade e estúdio de fotografia no Rio, em que aprendi a aplicação do conhecimento prático da minha profissão. Adquiri experiência em diversos campos de atuação da fotografia, o que me serviu como porta de entrada para o mercado editorial.

A partir de então tive a oportunidade de atuar profissionalmente em diversas áreas como esportes, retratos, ensaios e publicidade. Colaborei com as principais editoras de revistas e agências brasileiras. Durante este período, pude fotografar pessoas, lugares e acontecimentos históricos importantes. Desde a Floresta Amazônica profunda à visita oficial do ex-presidente americano Barack Obama ao Brasil, passando por retratos de medalhistas olímpicos e treinos militares de forças especiais. Sinto-me realizado e privilegiado por viver experiências jamais imaginadas.

Vir para Europa se deu pela vontade de trilhar um caminho de evolução e estudo, iniciado com a Pós-graduação em Discursos da Fotografia Contemporânea da Universidade de Lisboa. Atualmente desenvolvo projetos de fotografia comercial e autoral em Portugal, buscando continuamente o aprimoramento e a pesquisa por diversas áreas.

 

JH - Donde surgiu o teu interesse em fotografar na Margem Sul?

SM - A partir da curiosidade em conhecer melhor a área metropolitana de Lisboa, seus limites, periferias e território. Assim como o contacto visual a partir da cidade, as suas omnipresentes estruturas industriais, conexões fluviais, pontes... Isto fez-me pesquisar sobre a sua história, se revelando um local muito relevante geograficamente, com tantas camadas da passagem dos anos e possibilidades de transformação, despertando grande interesse para realizar esse projeto.

 JH - O título Riviera é, por um lado, essa palavra estrangeirada e o uso que a precede para designar uma zona glamourosa, como na Riviera francesa, por exemplo, e de modo menos cultural e mais orgânico, uma palavra com ligação óbvia com o rio Tejo. Alguma destas noções prevalece, ou o título tem outras relações não descritas?

SM - O título da série surgiu a partir da pesquisa sobre os novos planeamentos e projetos aprovados para diversas regiões da Margem Sul, que devido a sua vista e potencial imobiliário, despertou nos políticos e investidores o desejo que a região se transforme na “Riviera Portuguesa”.

Assim como o projeto polêmico do início dos anos 2000, que tinha a pretensão de transformar a região da Lisnave na “Manhattan” de Cacilhas, com torres alcançando 80 pisos. A Riviera se dá na promessa de mudança, transformação e, ao mesmo tempo, na ironia da grande ambição do mercado imobiliário. Deixo em aberto ao espectador a reflexão da origem do território, o seu passado e o que poderá representar no futuro.

 

 

 

JH - A Margem Sul é um termo para designar um território bastante amplo, muito dele banhado pelo Tejo, que poderá ir de Alcochete, Montijo, até Almada, passando pelo Seixal, Barreiro, Costa da Caparica, etc. Uma forma de abordagem como esta tua parece oferecer resistência a uma certa falta de identidade e individualidade marcantes, os lugares parecem ser indistintos, desinspirados e desinspiradores, onde quase só a fotografia os salva dessa condição. Se existe uma fórmula cliché de produção visual, por vezes exagerando na estetização para realçar o bonito e turístico, não se corre por outro lado o risco de se cair no cliché visual contrário sobre a Margem Sul? Por outro lado, a que critérios deste destaque nesta escolha de imagens?

 SM - O que me despertou interesse para esse trabalho foram os territórios em iminente transformação, locais que ainda guardam de certa forma alguma memória do espaço, assim como outros em constante situação provisória. A escolha das imagens ocorre na tentativa de representar e reunir todos esses aspetos como memória, futuro, mudanças, possibilidades, caminhos e conexões.

O meu objetivo foi abordar uma região geográfica, especificamente a extensão da margem do estuário do Tejo que faz fronteira com a cidade de Lisboa, mostrar o seu processo de transição e inevitavelmente o contraste com a outro lado. Não tive como propósito mostrar as diferentes realidades e características dos concelhos da Margem Sul, mas sim os pontos de convergência que surgem neste território em transição.

Acredito sim, que haja inspiração ao retratar a contínua transformação da Margem Sul e as suas possibilidades de futuro. Assim como considero valioso registrar a instigante “imperfeição" da vida. Estes são elementos que conduzem o meu projeto e utilizo tal interpretação para tentar provocar curiosidade e envolvimento sobre o assunto por parte do observador. Através desta abordagem construí a perspectiva da minha “Riviera".

Como mencionei anteriormente, os locais fotografados não foram inventados e, ao mesmo tempo, representam uma interpretação. Assim como o que se chama “cliché" faz parte do aspecto da própria fotografia e que nem sempre é de caráter negativo, o que também pode representar mais o ponto de vista do espectador do que a criação do fotógrafo.

 

JH  - É interessante referires os aspectos formais. Nas tuas imagens, a ausência de pessoas relembra a estratégia do casal Becher, da objectividade impessoal, do não distrair das formas, de eliminar o contexto social, abordagem comum em certos tipos de fotografia de arquitectura, a qual parece influenciar de modo algo este trabalho, desde a arquitectura do improviso a imagens de paredes, blocos visuais que ocupam grande parte do plano, onde se desenham formas, quase como se fossem telas. Porquê a opção de não apresentar pessoas?

SM - Gosto do conceito do fotógrafo americano Ansel Adams, que diz que em toda a fotografia há sempre duas pessoas: o fotógrafo e o observador. Além destas duas pessoas, muitas outras estão representadas em todas as imagens: nas construções, fábricas, moradias, ruas, portas, meios de transporte.

A fotografia é inevitavelmente forma, assim como o enquadramento e a composição. Porém, o que me interessa é seu significado, utilizo a forma como ferramenta para construir a minha narrativa.

Compartilho da interpretação de Robert Smithson, a partir do ensaio “The Monuments of Passaic” em que cada fragmento fotografado se torna importante como um monumento. Esses elementos permitem contar uma história.

Os blocos e elementos retratados por mim possuem os seus significados. A tela em branco representa o que está por acontecer, um espaço onde somos os atores e espectadores, como um palco de um teatro, assim como na metáfora da “paisagem como teatro” do geógrafo italiano Eugênio Turri.

Nesta metáfora a paisagem não é apenas o cenário das atuações humanas. O seu conceito pressupõe a ação do homem, seja como ator na modificação do ambiente, assim como espectador que consegue constatar o significado da sua interferência no território. Esse lugar de observador nos propicia uma melhor condução das nossas atitudes e intervenções, com a finalidade de construir um melhor espaço para todos.

 

 

JH - Em Portugal, a Margem Sul tem alguma conotação com periferia e subúrbio, palavras cuja carga simbólica algo negativa geralmente suplanta as possibilidades mais positivas. Como é que pensaste nessas questões e na possibilidade da fotografia de pendor neutro, poder apesar de tudo ser pouco neutral perante as mesmas?

SM - Realmente não sei se existe essa possibilidade neutra, apesar de tentar sempre iniciar um projeto sem pré-conceitos. Estou aberto a descobertas e novas possibilidades, mas também utilizo a minha experiência ao fotografar. Sempre será o meu ponto de vista sobre o lugar. A minha interpretação. Nunca será o território por ele próprio, é impossível. Existem infinitas possibilidades de abordagem e experiências sobre o mesmo lugar, por outro lado, nenhum dos lugares das fotografias foram inventados, estão todos lá, em constante modificação e cumprindo o seu papel na história e na sua existência. Acredito que o papel do fotógrafo passe por apontar caminhos, mostrar rastros e subentender que existe um mundo não enquadrado. Com o desejo de provocar questionamento sobre o assunto proposto. Existe, sim, muita carga simbólica sobre as periferias, o “centro” para milhares de pessoas que lá vivem e que muitas vezes não são vistos e valorizados como deveriam.

 

JH - Da opção pelo formato quadrado e a cores, em registo relativamente próximo de uma corrente topográfica, há algum núcleo de referências que te tenham inspirado a fazer este trabalho? por outro lado, a opção por um registo de luz sem contraste, “pouco arquitectural”, e refiro esse termo por ser em geral uma fórmula pouco apetecível para descrever aspectos da arquitectura e dos lugares é uma nota fórmula relevante: por que é que optaste por fotografar maioritariamente com aquela luz?

SM - Sem dúvida. Podemos ir dos gigantes Walker Evans, William Eggleston, aos “New Topographics”, a Escola de Fotografia de Dusseldorf, a fotografia italiana com Luigi Ghirri, Giovanni Chiaramonte, Guido Guidi, entre tantos outros. São referências constantes e que me motivam a trabalhar e evoluir. Compus o meu trabalho como uma luz homogênea, difusa, menos recortada e que não prioriza nenhum elemento específico, mas que busca evidenciar o assunto de forma equilibrada. Uma tentativa de não distrair a atenção para aspetos meramente formais.

 

 

JH - Uma das questões que se coloca na representação visual, sobretudo aquela com mais raízes na fotografia documental, é a de, ao invés de história e política, de alertar para perigos e questionar dilemas, as imagens reificarem a poética do visual e da metáfora, tendendo a reafirmar sonhos e mitos. Aquilo que é representado, e como é representado, envolve questões sociais, políticas, econômicas. Quais dessas questões, a existirem, procuraste explorar? Em que é que este trabalho aborda a dimensão colectiva daquele lugar? Quais são os perigos e dilemas, se é que existem, e de que modo este projetos os aborda especificamente?

SM - Acredito que a citação do grande Álvaro Domingues se encaixa perfeitamente neste tema e representa muito bem o fio condutor do projeto:

“No entanto, não há paisagens para sempre. A paisagem é registo da sociedade que muda e se a mudança é tanta, tão profunda e acelerada, haverá registo disso e pouco tempo e muito espaço para compreender e digerir todas as marcas e a forma como se vão atropelando mutuamente, ora relíquias, ora destroços.”

 

Penso que todas essas questões estão relacionadas e são influenciadas diretamente. Assim como a vida das pessoas que ali residem e trabalham são impactadas com novos planeamentos ou a falta deles, como por vários fatores gerados a partir de políticas públicas, sociais e interesses económicos. O avanço e o progresso são bem-vindos, mas o equilíbrio não é fácil, considerando a vida dos habitantes, o respeito e a valorização da história e uma integração social justa e  harmoniosa.

 

JH - Na exposição apresentas uma maquete, o que é que te interessou na concretização do livro em maquete?

SM - O livro é uma boa alternativa para eternizar o projeto. É um objeto de vida longa e cumpre o papel de ser registo para o tempo. Ele pode ser consultado, o que o tornando um documento. Também possibilita estabelecer uma narrativa com um corpo de trabalho completo e fidedigno como foi pensado. A publicação possibilita o trabalho alcançar o mundo de maneira atemporal e sem limitações de espaço físico, além de ser uma boa forma para organizar o projeto. Além disso, permite que seja a conclusão de uma etapa para abrir caminho para uma próxima.

 

(Todos os direitos reservados. Texto João Henriques/CEFT & Stefano Martini. Imagens Stefano Martini)

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