Centro de Estudos em Fotografia de Tomar - Fotografia e Território

Rua Fonte do Mundo

Projetos
Fotógrafo: Fábio Cunha

Fonte do Mundo é o nome de uma rua bracarense, nome em que Fábio Cunha intuiu um ponto de partida, de facto, um ponto de vista sobre a rua e a fotografia. Que a rua é em si mesma uma fonte comum e democrática, isso não poderia passar despercebido a um fotógrafo. Menos imediata é a sua percepção da rua enquanto fonte de mundo: que tudo aquilo que arrumamos sob o termo «mundo» tem origem na rua, tropo do encontro com outras pessoas, com o «não-eu».
É muito possível que esta percepção tenha sido facilitada pelo momento histórico. Fotografado entre vagas pandémicas, tal ideia de mundo já não a damos por garantida. De forma propositada e não paradoxal, o autor escolheu não incluir nestas imagens quaisquer vestígios da pandemia. Esta descomplicação do presente tem muito que se lhe diga. Recriando uma normalidade pré-traumática, apetece dizer que o autor usa a fotografia para deixar aos nossos filhos uma versão do mundo tal como o conhecíamos. Mas, veja-se. Este gesto, que parece histórico, e que não pode deixar de ter um significado pessoal, porque praticado em circunstâncias particulares, desoculta uma verdade menosprezada da fotografia, uma condição geral. O que aparenta ser a vida normal numa fatia de tempo-espaço não é mais que uma ficção da normalidade. (Não existe fora deste conjunto a rua por ele mesmo fabricada. Exteriores, interiores; as estradas, troncos, corolas, desastres, laços, gestos, gente, afectos, não são aqui indícios da rua epónima mas gestos na direcção de dar espessura visual a um ponto de vista). Não é isso, sempre, a fotografia?
O facto de estas imagens terem sido feitas em 2021 altera as regras do jogo, pelo menos, para Fábio Cunha. Sem dúvida por reacção à experiência comum do confinamento, a figura humana ganha aqui prioridade por comparação com obras anteriores. O apelo da proximidade perdida força-o a mudar de pele. As pessoas, que costumavam ser figurantes (formas), sobem a protagonistas. O jogo à la sauvette dá lugar à colaboração e esta levanta dificuldades de outra natureza. (O simples ter de pedir a um estranho que remova a máscara leva o fotógrafo a confrontar-se com máscaras de outra complexidade, frequentemente inamovíveis.) Alternando retratos, retratos de grupos, imagens da paisagem urbana, nas flutuações de perspectiva, pressente-se um fotógrafo navegando à vista, reaprendendo um jogo alterado pela história recente. Não que esta série seja marcada por seduções epistémicas, nem por qualquer ansiedade documental. Tal como não se interessa por explicar o que vê e o modo como vê, o autor não tem proposições definidas ou fins públicos de qualquer tipo a respeito daquilo que está diante da câmara. A fotografia é uma via privada na via pública. Apenas espera de nós que recebamos estas imagens com parecidas estranheza e simpatia àquelas com que o próprio autor as achou e as vê.
De passagem, igual estranheza e simpatia só podem ocorrer na rua, no acto da fotografia. Só os fotógrafos conhecem um contraste entre como se sentem na rua e como se sentem no museu. Numa entrevista, já velho, Walker Evans nota que “a rua torna-se o teu museu; o museu em si torna-se-te prejudicial. Não queres que o teu trabalho nasça da arte; queres que comece da vida e isso passa-se agora na rua.” A fotografia segue um instinto de realidade cuja condição é estar de costas viradas para arte e poder. O fotógrafo sente-se guiado para a rua (meio-cego) por uma esperança irresistível: a de que ela nos mostrará a face desconhecida daquilo que procuramos. Essa face parece-se sempre connosco mas não poderia ser substituída por um espelho. Só o mundo, a rua, a revela. A fotografia tal como aqui a vemos é assim um desporto de rua, um desporto apocalíptico. O de revelar como somos no que não somos. Eis o que estas imagens mostram. Uma ficção sobre a rua enquanto fonte a partir de alguns episódios de auto-reconhecimento por ela possibilitados. Uma definição de fotografia. Génese, apocalipse.

Humberto Brito

 

 

Fábio Cunha é fotógrafo e artista visual. Mestrado em arquitectura pela Universidade do Porto (FAUP), obteve posteriormente o Mestrado em Fotografia (EFTI – Madrid). Exibe regularmente desde 2014 em diferentes festivais, eventos e galerias. Publicou o seu livro  “Zona - An Investigation Report” em 2017, que recebeu o DOCfield Dummy Award Fundación Banco Sabadell - Barcelona, sendo selecionado como um dos melhores livros do ano pelo PhotoEspaña. Recebeu o "Parallel Award" pela exposição colectiva "Urgent Arts of Living" na Kaunas Gallery, Lithuania. Realizou recentemente residências artisticas no contexto do festival Encontros da Imagem – Braga; da Kaunas Artistic Residency – Lithuania e do Projecto “Flaneur ao Centro” – Procurar.te. Leciona na ETIC, onde coordena o curso de fotografia. O seu trabalho encontra-se representado em coleções públicas e privadas.

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