Centro de Estudos em Fotografia de Tomar - Fotografia e Território

Canada do Inferno

Projetos
Fotógrafo: José Afonso Furtado

Este projecto - Canada do Inferno - foi verdadeiramente um trabalho pessoal, uma vez que não resultou de qualquer proposta, encomenda ou sugestão, nem tinha objetivo previsto. Foi realizado entre o final de 2004 e meados de 2005, dez anos depois da decisão histórica do XIII Governo Constitucional de suspender, e posteriormente abandonar em definitivo, a construção da barragem de Foz-Côa, projecto iniciado em 1991 pela EDP. Em 1994 começam a surgir as primeiras e cautelosas notícias da descoberta de gravuras rupestres e, mais ainda, de que poderia tratar-se de arte paleolítica. Começa então uma querela feroz e generalizada entre a EDP, entidades públicas, arqueólogos, políticos, público em geral e mesmo - detalhe nada despiciendo - um movimento favorável às gravuras por parte dos alunos da Escola Secundária de Foz-Côa. Por fim, o Comité de Arte Rupestre da UNESCO, chamado à liça, confirma que “Foz Côa é o maior sítio de arte rupestre paleolítica ao ar livre de uma Europa onde então quase só se conhecia a arte paleolítica das grutas.” (Citado de Rocha, Luís Miguel, Um PREC cultural no fim do cavaquismo, Público. 14 de Agosto de 2016_versão digital)

Por razões profissionais acompanhei de perto este processo até à criação do Parque Arqueológico do Vale do Côa, em 1996, uma experiência que se revelou inesquecível e jubilosa. Por isso, quando tive oportunidade, fui rever e fotografar o cenário de anos antes. Tornou-se logo claro que o meu alvo não seriam os núcleos das gravuras, por ess altura já institucionalizados e protegidos, mas a outra margem, o estado das obras da barragem ao fim desse tempo de abandono. As condições desse percurso fotográfico foram particularmente propícias: facilidade de acesso (tinha levado um veículo TT e não havia zonas restritas), pelas condições climatéricas - uma amena morrinha - e um total silêncio e solidão. Pude então fotografar restos de edifícios e equipamentos industriais e o estado impressionante da intervenção humana na natureza: rasgões vertiginosos na terra e nas rochas, terraplanagens alucinadas, vertentes abruptas, estaleiros abandonados, enfim, os vestígios da violência e convulsão da terra. Como escreveu exemplarmente Maria do Carmo Serén, “a natureza nunca se deixou dominar com ligeireza.” Por fim, uma brevíssima explicação: embora inicialmente me tenha sido óbvio designar esta série por Canada do Inferno, verifiquei posteriormente que esse título provocava alguns equívocos, cabendo aqui clarificar o porquê dessa escolha: toda essa zona, onde desaguava no Côa uma pequena ribeira, era assim conhecida muito antes dos acontecimentos posteriores; a Canada do Inferno localiza-se um pouco a montante do local da ensecadeira, na margem esquerda do rio Côa, local escolhido pela EDP para a localização da barragem; tendo sido precisamente aí que se detectou o primeiro núcleo com gravuras, a Rocha 1 da Canada do Inferno; esse núcleo integra o maior número de rochas por estação, trinta e seis, todas elas em xisto e com painéis verticais e sub-verticais (Alexandra Cerveira no SIPA).

 

 

José Afonso Furtado (Alcobaça, 1953).

Licenciado em Filosofia (FLUL). Curso de Formação no Instituto Português de Fotografia (1981-1984), onde veio a assegurar, durante alguns anos, a Cadeira de História de Fotografia. Exerceu a sua actividade profissional em organismos governamentais na área da Cultura, tendo sido Presidente do Instituto Português do Livro e da Leitura (1987-1991). Posteriormente assumiu o cargo de Director da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian (1992-2012). Expõe desde 1984. Publicou vários livros fotográficos, designadamente Das Áfricas (com Maria Velho da Costa). Difusão Cultural, 1991; Os Quatro Rios do Paraíso (com Clara Pinto Correia e Cristina Castel-Branco), D. Quixote, 1994; Linha de Costa (prefácio de Bernardo Pinto de Almeida), Contemporânea Editora, 1996; Canada do Inferno (introdução de Maria do Carmo Serén) Edição do Autor, 2005 e Contaminações — Minas Abandonadas (Fotografias 1994-2009) com Ensaio de Maria do Carmo Serén. Lisboa: Documenta, 2019. Traduziu a obra On Photography de Susan Sontag: Ensaios sobre Fotografia, Quetzal, Lisboa, 2012. Está representado nas Colecções do Instituto Camões (Ministério dos Negócios Estrangeiros), do Centro de Estudos de Fotografia de Coimbra, da Fundação Belmiro de Azevedo, da Fundação PLMJ, da Colecção Nacional de Fotografia do Ministério da Cultura, do Musée de L'Élysée, Lausanne e do Département des Estampes et de la Photographie da Bibliothèque Nationale de  France.

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