No Vale de Massarelos, os caminhos do Romântico
Ano: 2001
Este projecto nasceu de um convite da Fundação Belmiro de Azevedo e exposto no SILO – Espaço Cultural, Porto, com produção NorteShopping | Fundação Belmiro de Azevedo e apoio técnico do CPF. Em simultâneo, a referida Fundação editou um pequeno livro/catálogo contendo a totalidade
das fotos e um admirável texto de Maria do Carmo Serén, a quem devo ainda o privilégio da companhia e orientação neste complexo mas fascinante percurso.
A expansão das grandes metrópoles tem levado à integração de núclos urbanos geograficamente próximos, fenómeno bem conhecido, embora muitas vezes mal interpretado. Álvaro Domingues defende que estamos “confrontados com variadíssimas formas de tipologias urbanas que colidem frontalmente com a unidimensionalidade da tipificação suburbana [- centro vs. subúrbio/periferia -] que ainda é corrente utilizar-se (…) O perfil compósito dos (ex)subúrbios, a não exclusividade da função residencial como elemento identificador, a tendência, ora para a miscigenação de actividades, ora para a ocorrência de enclaves especializados cuja existência só se percebe na sua relação com a malha viária estruturante, a imprevisibilidade das novas tipologias associadas a novas formas de produção, de distribuição e de consumo (…), a variabilidade das novas tipologias habitacionais periféricas, etc, produzem formas inesperadas e frequentemente estranhas a um urbanismo ainda demasiado agarrado a fórmulas e modelos já ultrapassados.” (Comunicação apresentada, em 1996, ao III Congresso Português de Sociologia).
Massarelos caracteriza-se pela sua longa história (aparece em documentos coevos pelo menos desde 1148, data em que D. Afonso Henriques doou este território - afastado do perímetro urbano do Porto antigo, muralhado - e respectivos direitos à Colegiada de Cedofeita) e por um conjunto várias dinâmicas e oposições que conformaram a sua história e que devem ser pensadas no seu todo se se quiser entender os ritmos e especificidades do seu desenvolvimento. Por exemplo Joaquim Flores considera Massarelos uma freguesia de dicotomias: “Cota alta/cota baixa; rio/campo; indústria/ruralidade; bairros sociais/grandes quintas; tradição/modernidade.” Com efeito, estende-se por uma zona ribeirinha, por uma zona alta e planáltica, de crescente densidade, com os bairros de Vilar, Campo Alegre e Bom Sucesso, e por uma zona intermédia com as suas quintas em socalcos, e onde se situam o Museu Romântico (agora Museu da Cidade) e os Jardins do Palácio de Cristal. Esta relação entre cotas apresenta um declive muito acentuado, em que a zona intermédia se desdobra em vários socalcos agrícolas, mas com “contrastes fortes de patamares contíguos”.
Miguel Pinto, na sua tese de mestrado (Cumplicidades com o Território Expectante: Projetar o Vale de Massarelos) defende três abordagens (por esta ordem): a topográfica, que “conforma a própria imagem do território, e dita proximidades e condiciona deslocamentos e implantações. Descreve-se este território humanizado (…) pela própria organização de patamares onde se fixaram usos e construções. A sua depressão topográfica é tanto o suporte deste território como o resultado final da sua transformação.”; de seguida a “morfologia do território humanizado, ou seja, a organização de usos esculpidos no território, como uma extensão da topografia. Da habitação à formação do espaço exterior, estes dividem-se por sistemas de características comuns que preenchem o Vale. Assim, entende-se como o Vale é formado por diferentes vocações do território, seguindo determinados sentidos, usos e lógicas.”; por fim, “o estado de ocupação do território, a um tempo ativo e inativo. Esta informação, mais volátil e imaterial, é relevante (…) pelo fator de inatividade que caracteriza o Vale atualmente…”. No seu início é caracterizado pela estreita relação com o rio Douro, o que levou à constituição de uma comunidade de pescadores e marinheiros, que também exploram o sal e virão mais tarde a praticar a agricultura nas encostas adossadas ao Douro. Para isso, será necessária a articulação com valências da cota alta. Hélder Pacheco no seu Porto (Novos Guias de Portugal), refere: “No alto da Rua dos Moinhos, está um dos mananciais mais ricos da cidade – a Fonte dos Caquinhos. Daí parte um ribeiro, de cascatas onde a água, correndo constante, murmura uma esquecida harmonia de sons naturais libertos dos ruídos do tráfego“. No século XVII, assiste-se ao desenvolvimento dos patamares agrícolas e ao aparecimento das azenhas, que cumprem uma dupla função: a moageira propriamente dita e a da regulação da água da rega de pequenas quintas e terrenos cultivados de vinhedos e pomares e ainda um tipo de jardim de um carácter íntimo, que em resposta ao seu distanciamento ao exterior do vale, salvaguarda a sua vegetação autóctone que caracteriza o seu estado inativo. Este “tempo de ouro” das azenhas propicia ainda o início da deslocação de alguma burguesia do Porto, muito inglesa, para esta zona, mais protegida da peste e da cidade inquinada, dando azo ao desenvolvimento das grandes quintas (Pena, Maceirinha, Vilar, a dos Pachecos Pereira, entre outras). Quando a actividade principal dos moinhos começa a deixar de ter sentido, antes da sua erosão, ainda um deles trabalhava para a fábrica de Cerâmica de Massarelos, mandada construir em 1763-64, símbolo do período pombalino e do início da industrialização. Começa assim a conformar-se essa espécie de palimpsesto, em que cada alteração numa subzona terá efeitos parciais (ou mesmo globais) e em momentos assíncronos. Com o final do Antigo Regime, a paisagem começará a ser preenchida com um conjunto de fábricas, fundições (Arrábida, Ouro e muitas outras, com destaque para as fundições do Bicalho e da Aliança) responsáveis por boa parte do fornecimento de ferro para as construções da cidade. Com elas chegam oficinas, armazéns, a central termoeléctrica, “ilhas” e habitações económicas, num processo que se prolongará pelas primeiras décadas do séc. XX, durante as quais surgirão os edifícios do Armazém de pescado de Massarelos e do Armazém Frigorifico da Comissão Reguladora do Comércio de Bacalhau. Outras indústrias transformadoras, tais como de moagem, de serração, e de rolhas, expandiam-se e instalavam-se pelas diversas áreas de Massarelos, alterando a paisagem e a morfologia urbana (In ARU Massarelos).
Quase simultaneamente, assiste-se à persistência de jardins públicos e privados planeados durante o século XIX, de que são exemplo as quintas e as casas burguesas - que já não são de arrabalde mas ao gosto dos ingleses do vinho do Porto, de muros altos que asseguram calma e conforto -, onde espécies vegetais autóctones e exóticas criam, em conjugação com a água, pontuada por chafarizes, fontes e lavadouros alimentadas pelo Ribeiro de Vilar, uma paisagem ao gosto contemplativo romântico. Segundo a formulação da folha de percurso do Museu da Cidade, “o contraste desta vivência pacata com o bulício industrial Oitocentista que se instalou junto ao rio é outro dos traços identitários desta área estendida em socalcos serpenteados por caminhos estreitos de altos muros.
Uma paisagem que ora se oculta, ora se revela, numa relação do corpo, espaço e história.” A isto se juntará, como escreve Carmo Serén, uma “ruralidade abandonada e reinventada de modo romântico para o exílio do rei Carlos Alberto (…) enquanto a nova burguesia a adopta, no interior de negócios e bairrismo, construindo o Palácio de Cristal, palácio de vidro, com jardins que Emílio David recriou dentro do mais puro manual do Romantismo. São já os Caminhos do Romântico, que podem ter aqui o seu início, nos jardins do Palácio de Cristal, no Museu Romântico (como até há pouco se chamava) e na encosta de Vilar voltada ao rio. Pela rua de Entre Quintas e rua da Macieirinha desenham-se percursos em ambiente rural, no interior do Vale, “espaços públicos apenas pedonais, estreitos e de topografia acidentada, em escada ou em rampa. Tanto são estruturas viárias herdadas do seu passado agrícola, como construções recentes de miradouros em situações de cota privilegiada, como ainda antigos núcleos habitacionais da comunidade piscatória nas ruas do Campo do Rou, Casal do Pedro ou na rua dos Moinhos.” (Museu da Cidade).
Em conclusão, caminhar sobre estas vias históricas e observar o panorama do vale estão, assim, fortemente associados à experiência deste território. Território que exige uma reflexão sobre o tempo. Se a ideia vulgar de progresso levaria a crer que a cidade se constituiria por uma substituição sequencial dos seus elementos estruturantes ou do “universo de composição da matéria urbana”, o que se verifica é que ela é afinal fragmentária e contraditória, que os seus estratos se acumulam e não se anulam, são infinitamente distantes mas contemporâneos, que nesse espaço intocado e profanado coabita o que resta da herança das rural, marítima e industrial.
[Chamada de atenção: este texto foi escrito em Março de 2024, para contextualizar o conjunto de fotografias de 2001. Com a recuperação em curso, com a extensão da linha de metro rubi atingindo esta zona, pode suceder que algumas das imagens se tenham tornado já fotografias de arquivo]
José Afonso Furtado (Alcobaça, 1953).
Licenciado em Filosofia (FLUL). Curso de Formação no Instituto Português de Fotografia (1981-1984), onde veio a assegurar, durante alguns anos, a Cadeira de História de Fotografia. Exerceu a sua actividade profissional em organismos governamentais na área da Cultura, tendo sido Presidente do Instituto Português do Livro e da Leitura (1987-1991). Posteriormente assumiu o cargo de Director da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian (1992-2012). Expõe desde 1984. Publicou vários livros fotográficos, designadamente Das Áfricas (com Maria Velho da Costa). Difusão Cultural, 1991; Os Quatro Rios do Paraíso (com Clara Pinto Correia e Cristina Castel-Branco), D. Quixote, 1994; Linha de Costa (prefácio de Bernardo Pinto de Almeida), Contemporânea Editora, 1996; Canada do Inferno (introdução de Maria do Carmo Serén) Edição do Autor, 2005 e Contaminações — Minas Abandonadas (Fotografias 1994-2009) com Ensaio de Maria do Carmo Serén. Lisboa: Documenta, 2019. Traduziu a obra On Photography de Susan Sontag: Ensaios sobre Fotografia, Quetzal, Lisboa, 2012. Está representado nas Colecções do Instituto Camões (Ministério dos Negócios Estrangeiros), do Centro de Estudos de Fotografia de Coimbra, da Fundação Belmiro de Azevedo, da Fundação PLMJ, da Colecção Nacional de Fotografia do Ministério da Cultura, do Musée de L'Élysée, Lausanne e do Département des Estampes et de la Photographie da Bibliothèque Nationale de France.
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