Centro de Estudos em Fotografia de Tomar - Fotografia e Território

7 Circulos

Projetos
Fotógrafo: Duarte Belo

Ano: 2014

Permanecer inexistente


Fotografar um conjunto de pontos determinados geometricamente a partir de um conceito geográfico. O desafio era relativamente simples. A partir de Lisboa traçar um conjunto de linhas cardeais e, na interseção destas com os limites da bacia hidrográfica do Tejo, admitindo algumas variações e desvios, definir pontos. Fazer as fotografias nesses pontos.

Começara a viagem nas proximidades de Lisboa, na rebentação das ondas na praia da Mata, na Costa de Caparica. A aparente frieza de um conceito de partida era ali desfeita nas águas frias do oceano de uma manhã de dezembro. Para onde apontar a câmara fotográfica? Esta seria a questão recorrente, nos vários locais. Um certo determinismo de fixação dos pés no solo, sobre o ponto, salvaguardadas e respeitadas as margens de erro, era ali quebrado pelo dinamismo da superfície líquida em movimento. Havia também uma rápida transformação atmosférica naquele raiar da aurora, onde as nuvens iam assumindo, céleres, formas sempre diferentes. As próprias cores do firmamento perdiam velozmente o tom rosáceo, para se assumirem como predominantemente azuis; um azul esmaecido por uma névoa que se apresentava com uma materialidade difícil de definir. Uma série de ideias de partida ficavam naquelas ondas. Havia agora a promessa de um desafio enorme onde nada, por certo, se iria repetir. Havia uma enorme vontade de percorrer todos os restantes onze pontos na expectativa de ir ao encontro, em cada um deles, uma forma nova de olhar. Havia uma surpresa em cada ponto, motivada por essa sensação de descoberta, de ser ali, mesmo que esse "ali", fosse uma construção com um acentuado pendor irracional. Avançaria, sucessivamente, para pontos mais afastados, limites geométricos da bacia do Tejo. Complexo montanhoso da Lousã, Romanillos de Atienza, Igrejinha, perto de Arraiolos. Finalmente o Tejo, perto do Bugio. Os itinerários estavam traçados.

A metodologia seguida assentava na impressão em papel dos pontos dados a partir de imagens de satélite. Implantava esses pontos em cartas topográficas e, com os vários elementos, seguia para o terreno. Não levava um aparelho de GPS, mas a exatidão do "encontro" era, na maior parte dos casos de uma assombrosa precisão. De qualquer forma a ideia de rigor, procurada, tinha sempre um papel relativo. Os dados prévios de uma posição, deixavam a liberdade de apontar a câmara fotográfica numa qualquer direção. O objetivo nem sequer era o de representar um ponto, era o de interpretar esse ponto, uma possível vista a partir dele, uma reflexão sobre a paisagem, sobre o território humano, sobre a fotografia, a representação do espaço, sobre a comunicação, a partilha de informação, sobre algumas impossibilidades. Para cada ponto fazia um conjunto mais ou menos diversificado de fotografias. E quais, qual, escolher depois? O objetivo não era o de selecionar a melhor fotografia de cada ponto, tarefa, aliás, de uma enorme relatividade, mas procurar um conjunto de 12 fotografias que pudessem, de alguma forma, contar uma história, dar conta de uma experiência, revelar as franjas de um mundo tão sedutor, quanto complexo. Propor um olhar, interpretar um conceito.

Quando confrontadas com o que se podia observar no terreno, a leitura das imagens de satélite, nalguns casos, evidenciavam a passagem do tempo sobre os lugares e as paisagens. Curiosamente era numa das maiores manchas vegetais, onde estava um ponto, que se notava a maior diferença perante a imagem de satélite. Tinha havido uma devastação de pinheiros, mesmo os aceiros, longas estradas retilíneas sobre o solo arenoso, haviam sido alteradas, particularmente alguns atalhos. A terra estava revolvida. Havia o confronto com a ideia de limite ao serem ultrapassadas certas barreiras construídas como limites de propriedade.

Nos arredores de Lisboa a recolha fotográfica decorria sem os sobressaltos que não fossem o espanto que cada ponto pareceria revelar, por tudo quanto não era possível representar. Havia formas novas de interpretar o visível, de o tentar captar, mas foi quando atravessava uma tangente à cidade de Madrid, rumo ao norte, que verdadeiramente se sentia fora e dentro de um certo mundo familiar que cruzava universos contraditórios. Contornava a grande metrópole humana onde um número interminável de automóveis circulava a velocidades elevadas num mundo denso de solidão acentuada por dia de luminosidade reduzida, rosácea. Como se a cidade tivesse, ela própria, um ponto nodal, um coração, em torno do qual se organizava assumia-se como a síntese perfeita de que podia ser um "ponto".

Havia em Madrid uma singular beleza destruidora. Como uma gigantesca máquina humana construída para nos transformar: a cidade imensa que se estende, descontrolada, pelas terras que ela própria torna estéreis. O projeto de um sonho construído por milhares, milhões de vidas de ambição. Havia naquele fluir de tráfego, o retrato de um movimento cósmico, com a diferença da imprevisibilidade, que reparávamos quando uma viatura à nossa frente se afastava numa direção própria, ou depois uma outra se juntava, como se fosse de repente inevitavelmente óbvio que não havia ali dois destinos humanos minimamente próximos, demasiado afastados mesmo. Mas sabia, no entanto, que duas pessoas vindas de lugares distantes ao redor dessa imensa cidade, se haviam de quotidianamente encontrar, trocar palavras, experiências, pele sobre pele. Madrid era o símbolo de uma poderosa máquina humana em movimento constante, milhares de pessoas orbitam em torno de uma praça do Sol, cidade que parecia agora representar um sistema definido por pontos no espaço celeste.

Há uma forma de síntese que procuramos numa única imagem, como uma fórmula matemática que revela a máxima realidade, ou uma bailarina que procura o movimento perfeito, ou a sublime interpretação de uma peça musical, a distância percorrida de forma mais rápida por um atleta, ou equilíbrio misterioso pintado numa tela. Há gestos performativos em todas estas ações. Esses gestos têm algo da sua essência na própria procura, mais talvez, do que no resultado, que se sabe ser sempre esquivo, efémero, circunstancial, executado num chão que se perde. Há um contexto mutante que desenha as marcas do tempo no nosso rosto. Fotografias como marca de vida. Desenho de um mapa.

Esta era uma proposta que acabava por se revelar um tremendo exercício de liberdade, ponto de partida de caminhos insuspeitos. Por onde nos leva o acaso do determinismo geográfico? Havia, talvez, alietoriedade nas escolha dos pontos, mas era esta intencionalidade que tornava a procura de campo sedutora. Havia um jogo inicial de persecução de um ponto abstrato num mapa. Depois, o conjunto definia uma geometria estranha, mas, de alguma forma, essa era uma imagem real de um território. Não havia a escolha prévia de pontos de interesse, determinados por uma qualquer intenção cultural, as sugestões deixadas pela história de edifícios notáveis inscritas em tomos de história da arquitetura, seguindo uma lógica determinada à partida. Havia a evidência de que os doze pontos fotografados eram completamente insignificantes no retrato de um lugar, de uma paisagem, de um território, mas era essa constatação, de um mínimo estatístico, que, contraditoriamente, tornava estes encontros especiais. O fascínio do visível estava presente. Não nos podíamos ater a um conceptualismo de regras feitas. Havia opções a tomar, diferentes modos de ver e captar a fotografia, havia o perene mistério de uma beleza, de um conceito de belo, que não podemos ignorar como um dos grandes motores da vida consciente.

Num discurso fotográfico documental, mesmo num território em que fronteiras, classificações, entre linguagens descritivas e interpretativas deixam de fazer sentido, estes pontos acabam por representar um limite de possibilidade. Esse limite prende-se com a representação do ser, com os limites da linguagem, da capacidade de comunicar, espaço entre o ensurdecedor ruído e o silêncio do cosmos. O documentalismo assume a forma perfeita de arte maior, ao captar o impalpável, ao levar à experiência da vertigem do tempo como espaço infinito, a sensação plena de estarmos integrados numa cosmogonia onde a vida se revela, então, no seu absurdo, na loucura que é a consciência, nesse despertar da angústia e do medo, longe das constâncias cósmicas reveladas em fórmulas matemáticas, os movimentos celestes, as explosões incomensuráveis, os buracos negros. 

Começara com os pés dentro do mar numa manhã fria do outono, como que chegado de uma imensa viagem oceânica. Gravitara em torno da maior cidade ibérica, navegar num mundo estranho de movimento, a loucura de um carrossel impossível de deter. Enorme viagem para encontrar o frio intenso, onde a chuva principiava, luz em queda sobre a noite, sentimentos dispersos e desconexos, entre o passado que une o amor, a perda, as fotografias de um arquivo vivo e infindável, projetos de lugar, caminhar humano. Acabava a recolha fotográfica ao largo do farol do Bugio, inverno entrado, como se aí, finalmente, descobrisse o coração simbólico de toda a área metropolitana de Lisboa, centro periférico, exterior ao seu espaço urbano, mas de onde era possível pressentir a cidade, a sua razão de existir, a lógica possível do seu povoamento. Era um local afirmado, de sobremaneira, pela própria existência do farol, um ponto luminoso na escuridão. Ao contrário de todos os pontos que procurava, que tinha fotografado, lugares para observar o mundo em redor, aquele ponto luminoso era como que um ponto de chegada e não de partida, era um ponto para atrair o nosso olhar e não para divergir a nossa mirada, era um ponto de orientação. O Bugio colocáva-nos perante a questão de partida, com que se iniciara este jogo: o que é um ponto? No início era um desafio de descoberta, chegados ao derradeiro ponto, era o pensamento derramado, incontido, por um espaço-tempo enorme, infinito, era a perplexidade que nos oferece a reflexão humana que de um nada constrói uma cosmogonia, um sentido de existir, apenas, talvez, um modo de olhar a vida, um erro, um desvio.

Registar os pontos de um território que, de outra forma, muito provavelmente, nunca repararíamos neles. Andamos no limbo da alietoriedade, retrato de um caminho que queremos encontrar, que ligue um passado inacessível a um futuro, sempre, imprevisível, num espaço indeterminado. Movimento interminável e fascinante. Nos pontos de um mapa encontramos rostos desfocados, alguém que não conseguimos identificar, nomear. Alguém próximo, talvez a imagem devolvida por um espelho. Parecia penetrar no absurdo da vida, como se aí estivessem desenhados os pontos que procurava. A invenção dos lugares humanos, brancos, vazios de outras realidades como aquelas que representam as perdas reveladas nas fotografias ao quererem aproximar-se de uma essência vaga, de um fundamento, de uma coerência. Agora, flutuando sobre uma superfície líquida, algo terminava, entre um rio vindo de longínquas montanhas e o mar de horizonte largo de viagens, ficaram as florestas, um pinhal destruído, espaços suburbanos, lugares sem nome, ou o coração de serras pobres e desertas. Chegar ao ponto derradeiro de um imaginário como uma realidade próxima mas indecifrável. Descoberta e perda no mesmo instante. Esvaziamento no momento em que alguma realização parece ter sido atingida. Pontos em movimento em torno de outros pontos. Velocidades diversas, constantes. Universo.


Duarte Belo, Janeiro de 2014

 

 

Duarte Belo, (Lisboa, 1968).

Formação em arquitetura (1991). Desde 1986 que trabalha no levantamento fotográfico sistemático da paisagem, formas de povoamento e arquiteturas em Portugal. Este trabalho continuado sobre o território deu origem a um arquivo fotográfico de mais de 1.750.000 fotografias. Publicou vários livros sobre o tempo e a forma do território português, de que se destacam: Portugal — O Sabor da Terra (1997-1998); Portugal Património (2007-2008); Portugal Luz e Sombra (2012); Caminhar Oblíquo e Depois da Estrada (2020). Tem trabalhado sobre nomes relevantes da cultura portuguesa, como Mário de Cesariny, Ruy Belo, Alberto Carneiro, Miguel Torga ou Sophia de Mello Breyner. Lecionou áreas relacionadas com a fotografia e a arquitetura. Expõe desde 1987 e participa regularmente em conferências e mesas redondas. É editor do blog Cidade Infinita.

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