Centro de Estudos em Fotografia de Tomar - Fotografia e Território

Entrevista A Invenção da Amnésia - Parte 2

Entrevistas
Fotógrafos: Fernando Brito, Miguel Rodrigues, Nuno Andrade

2ª parte da conversa com os autores do projecto colectivo “Invenção da Amnésia”, a pretexto da exposição na Casa dos Cubos entre 19 de Junho e 28 de Agosto de 2021. 1ª parte aqui.

 

Imagem: Miguel Rodrigues

João Henriques (JH). Penso que o Miguel já antecipou um pouco a resposta a esta questão, mas o título “A invenção da Amnésia” aponta à função mnemónica das imagens, essa que foi, e é, um dos terrenos de construção da significação em fotografia. Em que medida é que a memória se constitui, se interpela, ou interage em cada um dos vossos trabalhos, quer enquanto processo que questiona essa função através da imagem, quer enquanto aspecto da memória individual?

 

NA - Neste projecto específico, parti de personagens e locais que fazem parte da minha memória íntima e da “minha” estrada. Ao percorrer o troço de estrada a pé, acabei por me deixar conduzir e o que antes era invisível foi-se relevando e a memória foi sendo reconstruída. O que apresento neste trabalho é fruto desse percurso, percorrido com outro tempo e foco.

 

 FB - O título deste projecto resultou de uma das muitas conversas com o Miguel Rodrigues, na qual, a dada altura, referimos a expressão do Francesco Careri “ lugares amnésicos”. Falámos igualmente do “ Livro do Riso e do Esquecimento” do Milan Kundera, e a partir daí chegamos ao título “A Invenção da Amnésia”. A questão da memória surge naturalmente como uma tentativa de reconstituição a partir de um processo de desagregação, e de posterior dissolução. Já não se trata apenas da fragmentação do real, trata-se de uma perda total da memória. O Miguel costuma usar a experiência da moeda do Sven Bernecke, em Philosophy of Memory: an Introduction. Nessa experiência, os leitores são convidados a desenhar uma moeda de uso corrente, mas quase ninguém consegue desenhá-la com todos os detalhes, dir-se-ia que o melhor que se consegue é um protótipo incompleto. Ligando esta experiência com a outra já referida anteriormente, a da folha de papel com diagramas e conceitos que se espremem numa tina com água, podemos substituir os conceitos e os diagramas pela descrição da moeda. Rasguemos o papel em pedaços. Mergulhemos esses pedaços de papel na água. Atiremos a água fora. Com o que é que ficamos agora? Com um protótipo incompleto de uma moeda? Com um fragmento? Claro que não, estamos a falar de uma desagregação, seguida de uma dissolução. Isto é a amnésia, não apenas a amnésia dos lugares, mas a amnésia em sentido mais lato. É com esta amnésia que trabalho a partir do personagem dos meus filmes, alguém que não sabemos quem é, para onde vai, de onde veio. Percorre o território com uma lanterna acesa em plena luz dia à procura de algo que ninguém sabe o que é. Interessa-me este processo absurdo de uma reconstituição (impossível) da memória. A amnésia é, neste contexto, um processo que permite que nos movimentemos numa tensão entre o habitar como campo aberto da experiência, e do hábito como a sua cristalização formal; entre a intimidade e o automatismo; entre a memória e o (quase) esquecimento, de acordo com aquilo que são alguns dos pressupostos do colectivo.

É partindo destes pressupostos que trabalho um conceito denominado por estranhamento. Em poucas palavras, este conceito teorizado por Viktor Shklovsky em Art as Device (1917) argumenta que a percepção, à medida que se torna uma rotina, torna-se automática. Todos os nossos hábitos se recolhem para a área do inconsciente automático. O mesmo se passa com os objectos depois de serem percepcionados várias vezes, adquirem o estatuto de “reconhecíveis”, o que de acordo com o autor nos remete para a ideia de “percepção automatizada”, isto é, aquilo que designamos no projecto como cristalização do hábito. O processo de estranhamento (ostranenie) causado pelo prolongamento da percepção, como que estende o tempo para além da sua linearidade, e constrói um casulo temporal, no qual o presente se torna avassalador, costumo denominá-lo por “estranhamento temporal”. É no contexto dessa distensão temporal que construo uma relação com a experiência do espaço e dos lugares. A amnésia surge como ponto de partida para essa experiência. Quando é impossível recordar, só resta a procura como processo de habitar, como um processo de estranhamento poético.

 

 

JH. Fernando, essa tua resposta fornece algumas notas interessantes acerca da memória, onde se parecem "dispensar" os mecanismos de automatismo e fixação do hábito, os quais só a memória permite, para se voltar ao novo, ao habitar. Não seis e será bem a mesma coisa, mas creio que os Surrealistas também tinham uma noção parecida, da escrita automática, como sendo a mais original, em bruto, sem filtros, em que um certo caos conduziria a uma espécie de homem novo, poético, criativo, incessante, algo alucinado, sem dúvida, também, e parece-me que referes o estranhamento poético como ordem de movimento deste teu processo. Todavia a teoria Surrealista nunca foi bem explícita na sua funcionalidade, algo comum à Psicogeografia Situacionista, em que Debord nunca conseguiu calcar nada na prática de como chegar a tal fim. Se por um lado, pelo menos na teoria, esse processo pode ser fortemente transformador no interior do individuo que o faz, de ti, neste caso, por outro lado, parece-me ser um experiência de complicada réplica visual, ou de provocar no espectador algo sequer semelhante. Esse estranhamento da representação, que mencionas, sobretudo quando ligado a um território, tanto pode ser largamente alienante como amplamente interessante; o que para ti é um processo de desconstrução, para outros é apenas algo sem nexo, e vice-versa. Convocas a dissolução como parte importante deste processo de reconstrução, todavia a dissolução é dos momento mais difíceis de revelar, é a alquimia da água, onde nada tem forma visível, e o que vêm a seguir ainda tem uma forma difusa, depois da separação dos elementos. Se para quem faz há sempre um nível de revelação inerente ao processo, porque o vive, isso parece quase inatingível a quem vê. Parece-te possível fazer uma ponte entre estes dois mundos, ou eles ficarão sempre irresolvidos? Que dimensão individual de todo este processo é passível de ser conjugada colectivamente, como é que se dá uma tensão produtiva? Como é que isto se torna produtivo para ti?

 

  FB- O personagem criado pelo André Fontes, um escritor que colaborou com a Invenção da Amnésia no Project Room do Museu da Paisagem, afirma a dada altura que “ …as paisagens mentem…” e mais à frente “…as paisagens devem mentir…” Sabendo que imagens e paisagens têm uma raiz comum, é impossível escapar à condição de um certo simulacro que as mesmas implicam: as paisagens surgem das imagens e as imagens surgem das paisagens, a sua circulação constitui-se como um dos pilares do processo de alienação colectiva. Mas esse é precisamente o seu apelo e o seu fascínio. A dissolução, como processo amnésico, surge como possibilidade de estranhamento do mundo e da sua representação, que como já referi, se reflecte numa abordagem que aponta para uma certa rarefacção, uma certa erosão do território, das paisagens e dos lugares, com reflexo na forma como são representados. Existem sempre um conjunto de tensões que não são resolvidas, e não têm de ser. Interessa-me percorrer ao longo dessas tensões, entre o tempo do corpo, o tempo geológico e o tempo tecnológico, entre o território como representação e o território como espaço a ser atravessado e vivido, entre o que Deleuze e Guattari referem como “espaço liso e espaço estriado”. Em suma, entre mapa e mapeamento. A forma como as diferentes propostas artísticas são recebidas pelo público é algo que nunca controlamos. Penso que estamos todos cientes do carácter polissémico das imagens e das paisagens. É uma questão sem solução, por isso tão fascinante.

 

JH. A ideia de mapeamento, enquanto articulação complexa entre evidência sensual (dos sentidos), memória pessoal, documentação, numa atitude de exploração mas também de medir o pulso, de sismografia, promove uma construção cultural do lugar, e da percepção, que parece importante reter. No entanto, este tipo de inquérito, e sobretudo a esse lugar que vocês mostram, o qual é por vezes caracterizado através de palavras fortes, como periferia e subúrbio, trás à tona uma das questões que se coloca na representação visual, sobretudo aquela com mais raízes na fotografia documental, que é a de, ao invés de história e política, de alertar para perigos e questionar dilemas, as imagens reificarem a poética do visual e da metáfora, tendendo a reafirmar sonhos e mitos. Na medida em que algumas das vossas imagens remetem para vestígios escultóricos, que tanto podem remeter para a problematização do necro-capitalismo, como para a apropriação da ruína como intuitos meramente formalistas, aquilo que é representado, e como é representado, envolve questões sociais, politicas, económicas, que se levantam com este trabalho sobre a En10. Quais dessas questões, a existirem, procuraram explorar? Em que é que este trabalho aborda a dimensão colectiva daquele lugar? Quais são os perigos e dilemas, se é que existem, e de que modo os vossos projectos os abordam especificamente?

 

NA - Ao incluir determinadas imagens no meu trabalho sobre a EN10, acabo de alguma maneira, por representar a história da estrada e o território que atravessa, que acaba por ser também a minha. Através da observação e registo destes inúmeros vestígios e ruínas presentes ao longo de todo o percurso; umas, restos de um passado ligado à indústria naval, outras, produto de décadas de construção caótica e não planeada, conseguimos de alguma maneira, ler e orientar-nos neste território hostil e sem mapa. Percorrer o troço de estrada em que trabalhei, compreendido entre Cacilhas e Quinta do Conde, é observar um território que acaba por se revelar de uma maneira quase linear, como se fizéssemos um corte num território e observássemos todas as suas camadas e vestígios que nos permitem contar a sua história social, política e económica ao longo do tempo.

A minha abordagem à fotografia sempre foi muito simples e directa. Não me interessa só a poesia dos lugares e a fotografia das coisas belas. Talvez por morar na periferia de uma grande cidade, movimento-me bastante bem neste meio e os temas que abordo acabam por reflectir a minha própria vivência e território. Não tenho receio e aversão ao que é menos belo, aliás, acho que isso é o que me atrai e me desperta o interesse. Não se pode dizer que a EN10 seja o lugar mais bonito e organizado do mundo, mas o desafio foi esse, de registar algo que à partida não cabe num postal ilustrado mas que me prendeu a atenção e escolhi fotografar: a ruína, o caos, o absurdo, que acabam por ser parte integrante da história daquele lugar.

 

FB – A reificação a que te referes é um fenómeno transversal a toda a imagética, seja ela de cariz mais topográfico ou de” estilo documental”, seja em imagens de teor mais poético. É uma inevitabilidade da actual sociedade do espectáculo. No meu trabalho actual , existe uma tendência para a utilização de códigos tradicionais da composição estético-formal. Eles são uma sedução visual que serve de base para a criação de interferências, algo que pedi emprestado à teoria da performance, nomeadamente à obra do Anthony Howell . Essas interferências, que podem ser mais discretas ou mais visíveis, têm como objectivo criar alguma desorientação, alguma dúvida sobre o que estamos a percepcionar.  O carácter paradoxal da presença do personagem assumidamente inspirado em Diógenes de Sínope, (mas que também evoca de certa forma, a figura do herói romântico e no caso de um dos filmes, a Ruckenfigur de Caspar  David Friedrich ), no contexto da narrativa fílmica é complementada por outras intervenções que estabeleço posteriormente nas instalações, nomeadamente com a utilização de mapas , desenhos técnicos e memórias descritivas e até, nesta última exposição, a utilização de alguns materiais de construção, como a malhasol que evocam as quadrículas de um mapa. Não se trata do tradicional inquérito ao território oriundo de projectos como o DATAR , interessa-me mais explorar a tensão entre o lado documental e o lado ficcional, convocando o conceito de estranhamento, como dispositivo de questionamento das paisagens e das imagens.

O pensador Ghunter Anders afirma que o mundo perdeu os seus caminhos. Por outro lado o geógrafo cultural Nigel Thrift sustenta que no presente, a deriva (referindo-se à deriva situacionista dos anos 60) já não é possível pelo facto de estarmos constantemente localizáveis. Já não nos lançamos no mundo, já não percorremos caminhos, é um mundo mediado que nos é enviado num fluxo que conduz ao esmagamento. É nesse contexto que a experiência se torna supérflua. A Marie José Mondzain chama-lhe “ o espectador em apneia”, um vivente que já não tem a percepção de atravessar o mundo. É nesse sentido que na Invenção da Amnésia falamos do habitar como campo aberto da experiência e do hábito como cristalização formal. A E.N. 10 funciona acima de tudo como palco da experiência dos vários autores com um espaço com o qual desenvolvem ou desenvolveram uma relação de intimidade. No meu caso, estou mais interessado no processo de procura a partir da amnésia do personagem. Para isso recorro a alguns conceitos, tais como a circularidade, a repetição, a temporalidade/duração e o estranhamento. As paisagens nos meus filmes, como já referi, apontam para uma certa “exaustão” do território, na medida em que as referências visuais são, na maior parte dos casos, como que “rarefeitas “. É a partir delas que estabeleço uma tensão com as referências sonoras segundo o princípio de “Ouvimos mas não vemos”. Nunca sabemos verdadeiramente onde estamos, é criada uma certa desorientação perceptiva.

Nos trabalhos que tenho desenvolvido no âmbito da Invenção da Amnésia, os sinais desse necro-capitalismo a que te referes são, na maior parte dos casos, apenas sugeridos, não são totalmente explícitos. Como já mencionei , tento deixar latente uma certa “exaustão” do espaço e do território através dessa abordagem. São os gestos e as acções de atravessamento do espaço que, recorrendo ao absurdo e ao estranhamento participam n a construção da narrativa audiovisual. Nesse sentido tenho procurado operar em áreas a que Francesco Careri denomina como “lugares amnésicos” ou usando a expressão de Robert Smithson, “ lugares entrópicos”, embora também aprecie a designação de “lugares suspensos. Porções de território que perderam a sua função inicial, lugares que inicialmente tiveram uma função de cariz industrial, nomeadamente uma antiga zona de extracção de areias sílicas, um “terrain vague” que durante anos recebeu de forma clandestina toneladas de entulho resultante da expansão urbana da cidade de Lisboa, zonas industriais desactivadas, etc. A percepção desses espaços não se limita a dados objectivos ou à observação da estratificação dos vestígios existentes, vulgo ruínas. Ele assenta igualmente num conjunto de outras camadas, que se interligam a partir da ideia de habitar como um processo relacional e de experiência do vivente com o espaço e com o território, e uma relação entre ficção e realidade no sentido da criação de um mapeamento infinito. A forma como esta abordagem se interliga no colectivo remete para uma reconstituição a partir de um processo de dissolução, de um processo amnésico. A Invenção da Amnésia, e nomeadamente a minha contribuição através do projecto Caminhos Vagamente Circundantes, constitui-se a partir de uma obra que se desdobra ao longo do tempo, como um protótipo contínuo, utilizando a terminologia de Denise Ziegler. O projecto A Invenção da Amnésia actua numa zona de tensão entre mapa e mapeamento infinito, que na sua essência se consubstancia como uma forma de habitar.

 

MR - Recentemente, passei 11 horas com o Fernando a tentar perceber como encaixar duas ideias da investigação artística na forma como articulamos o projeto. Fizemo-lo para um artigo que, entretanto, publicámos no 2º número da RIACT, uma revista dedicada a questões de investigação artística da Faculdade de Belas Artes da ULisboa, coordenada pelo professor José Quaresma, que entrevistámos para o ciclo de conversas da invenção da amnésia. A primeira, dum desses nomes da investigação artística, Henk Borgdorf, falava da ideia do pensamento, da realização e da reflexão como produção de conhecimento. A segunda, falava de um caráter metafórico da verdade na produção artística, uma ideia desenvolvida por José Quaresma a partir de uma leitura de Nelson Goodman.

Uma das grandes dificuldades que este projecto encerra está precisamente na necessidade de construir um campo de articulação colectiva forte, cuja força advenha dos campos de experiência e de expressão de cada autor. Usaste o termo sismógrafo, que me pareceu interessante. A questão que se coloca é o quê ou quem é o sismógrafo, aqui? Quem sente o espaço que experimenta e se expressa a partir da articulação dessas sensações e desses sentimentos? Quem o continua, usando os mecanismos de resposta que quem sentiu e se expressou criou? Quem impõe esses mecanismos e essas respostas como modelo de uniformização comunitária? O Cartógrafo, o Fotógrafo, o Sismógrafo… mas também o Filógrafo, Cientógrafo, o Politógrafo – é interessante pensar porque é que podemos falar de grafia nuns casos, mas noutros dizem que a palavra está errada – todos nos encontramos nesta encruzilhada gráfica McLuhanesca; presos entre as extensões que nos aumentam, a nossa sensibilidade que diminui, e um princípio de acção mais ou menos gregária que, com os excessos na circulação da informação, se torna cada vez mais complexa. Isto tudo sem falar do que o aparelho virá a medir em função disso. O projecto fala de uma tensão constante entre o mapeamento quase como coisa autopoiética, que nos constitui num nível muito básico, numa acção que se faz experiência do estar no tempo, e do mapa como instante gráfico de cada uma dessas acções. Se fazemos mapas, imagens ou apenas sentimos; se construímos teorias, hipóteses de repetibilidade ou discursos aglutinadores, voltamos sempre à mesma questão: Estávamos em frente ao precipício…

Para mim, a fotografia mostra o vestígio de um encontro de uma certa configuração do sujeito com uma certa configuração do espaço. Permite-me guardar ideias, afectos e emoções; permite-me orientar-me num espaço que, através deste registo, me permite imprimir nele qualquer coisa do facto de eu estar ali, como uma marca ou um marco relacional. Um amigo, certa vez, falava com grande emoção da descoberta de que a gravidade era um efeito de atracção dos corpos uns sobre os outros. Dizia que, se era assim, também nós atraíamos a Terra para nós. Achei aquilo um tremendo disparate, porque, a haver alguma influência de atracção nossa sobre o planeta, seria perfeitamente negligenciável, de tão ínfima. Levei anos a perceber que ele tinha razão e que esta abria toda uma poética para o uso da fotografia: permite-nos guardar os fragmentos de planeta que conseguimos atrair na nossa configuração do mundo, e serve para nos lembrar desse jogo de ritmos entre nós e o espaço. Torna-se um instrumento de mapeamento dessa relação. Assim, antes do processo de edição que dá sentido à colecção de fragmentos que decorrem desse mapeamento, e o transforma num corpo de trabalho, já tenho uma imagem dessa articulação. Da mesma forma como as relações com pessoas nos dão, através da percepção dos comportamentos delas, uma percepção dos nossos estados, assim a fotografia dá-me essa percepção dos meus estados em determinados locais a determinadas horas. Essa relação sujeito-local-tempo acaba por minar uma visão mais estática, tanto do sujeito, como do espaço, como do tempo, que a fotografia – sobretudo, no quadro da sua relação com o território, tem privilegiado.

Reconheço as questões e as implicações da fotografia para a memória colectiva – os espaços em que me movimento e trabalho são memórias colectivas edificadas, ou ruínas delas, e o meu comportamento neles ajusta-se, por estar onde está, e por ser fruto de relações humanas aí estabelecidas – mas apenas me interessam na medida em que vêm à superfície nessa relação do Si com o espaço em que se encontra. Se a cultura é uma segunda pele, como se diz, as imagens funcionam como escamas, quase, como instrumentos de respiração entre as duas.

Por essa razão, tendo a ver estes vestígios, não sei se como uma apropriação da ruína, como referes, mas como a ilustração de uma desatenção a um processo existencial que é, ela mesma, causa de ruinação, não do espaço, mas do nosso tempo nele. A própria ideia do que é a ruína remete, inicialmente, para algo que perdeu funcionalidade e viu empobrecer o seu caráter simbólico, ou marcá-lo com essa ideia de perda. Há um artigo de Tim Edensor, Walking Trhough Ruins, em que ele destaca, não essa perda, mas a abertura que a ruína abre para um conjunto de experiências novas do espaço. É interessante que muitas dessas experiências partem de uma sensação de desconforto inicial pela forma depreciativa como avaliamos a ruína, que tem de ser abandonada para se ver o espaço a partir de uma posição neutra; como uma abertura a novas possibilidades: novas formas de vida, novas visualidades, novos sons, e até como descoberta arqueológica na relação destacada com os vestígios que, de certa forma, fazem com que o passado ainda lá esteja.

Muitas vezes, estes termos, ruína, necro-capitalismo, até mesmo vestígio, documento, permitem-nos, passe o cliché, olhar sem ver; oferecem-nos mais janelas de onde ver, com todos os condicionamentos que isso implica. Não precisamos de abrandar e ver melhor, não temos de mudar de ritmo, na nossa experiência, porque estes termos já vêm carregados o suficiente para que possamos manter-nos em aceleração.

Este ritmo e esta aceleração, esta forma de pendurar logo o que vemos nesses cabides dos símbolos, talvez ainda mais agora, com a digitalização da experiência, vão-nos deixando cada vez mais parados, como pontos de articulação da circulação. Parece que, quanto maior a velocidade da informação, maior a estagnação do movimento do humano. Estávamos parados no metro, no autocarro ou no carro; estamos ainda mais parados em frente ao monitor. O manancial de informação a que temos acesso por via dessa aceleração é convertido mais vezes em distracção do que em conhecimento.

Nesta conversa, o Fernando usou uma imagem muito bonita, a de alguém que deita uma folha com estes conceitos numa tina de água, que espreme a tinta da folha para a tina e manda a água fora, para depois partir numa procura pelos conceitos perdidos.

Fiquei a pensar nessa água infiltrada no território… o que iria fazer crescer: as fábricas todas que os conceitos souberam criar, ou as árvores e o rio e a montanha dessa paisagem que a visão das fábricas fez perder?

 

JH. Nuno, nas imagens que produziste para esta série, ou pelo menos aquelas que temos no site, e que mostras na exposição, o retrato insere a presença humana no lugar de forma algo ambivalente: por um lado, close-ups, que implicam grande proximidade com as pessoas, e por outro lado, planos algo distanciados, em que ora acontecem coisas, por ex. um grupo a praticar música, creio, ora nada parece acontecer, e o retratado quase parece ter mais uma função de escala com a arquitectura. São estratégicas que me suscitaram alguma curiosidade, podes deslindar algo destas várias opções?

 

NA - O retrato sempre foi o meu campo de acção e são as pessoas com quem mais gosto de trabalhar. Fiz aqueles retratos com o mesmo processo que fiz algumas das imagens de edifícios que integram o projecto. Gosto de trabalhar com tempo e normalmente não fotografo ao primeiro contacto. Conheço os sítios e as pessoas, volto mais tarde para os conhecer melhor e apenas quando a confiança é estabelecida e me sinto à vontade com as pessoas, coisas e lugares, fotografo. Normalmente este processo é repetido e a tal proximidade que falas acaba por se revelar através das imagens. Há situações em que esta ligação e cumplicidade é menos evidente, dado serem imagens de passagem, em que a figura humana faz parte da mesma, mas não é o foco principal.

 

Imagem: Nuno Andrade

 

JH. A moeda cultural corrente ligada à fotografia e às imagens, independentemente de serem sobre paisagem e território ou não, parece conter várias faces: uma certa suspeição acerca da veracidade das imagens; a imagem como elemento secundário a uma gratificação algo instantânea; uma super-produção de imagens; uma certa falta de peso e influência da imagem, no contexto cultural, social e político, vista como pouco mais do que entretenimento, esta última ideia talvez reforçada por algum tipo de produção artística baseada na paisagem, historicamente de carácter formalista, algo esvaída das questões do território onde é feita, onde predominam as expressividades e as metáforas, em detrimento do enraizamento na profundidade da interacção humana com o meio. Se concordam com estas questões, de que modo os vossos trabalhos as endereçam? Por outro lado, ainda em ligação com a primeira parte desta questão, um certo anti-intelectualismo da sociedade em geral, parece comprometer uma determinada retórica ligada à produção visual, que parece ser algo complexa/alienante para o espectador menos ciente das linguagens da representação. Como acham que isso pode ser questionado?

 

FB - Já aqui referi a expressão “ a apneia do espectador” de Marie José Mondzain, para ajudar a que nos situemos face à voragem incessante da produção e circulação de imagens. No contexto desta fase da sociedade do espectáculo, o novo espectador já não se encontra simplesmente numa atitude passiva perante esse fluxo incessante, ele é parte integrante desse fluxo ao participar “activamente” na sua produção. Há um efeito aditivo neste consumo desenfreado de imagens, sendo que a não participação produz um estigma de cariz depressivo, pelo não reconhecimento de uma pretensa existência no mundo, uma espécie de Dasein invertido. Como se pode questionar tudo isto? Esta é a chamada “pergunta de um milhão de dólares”. Eu diria, seguindo aqui o pensamento do Boris Groys, que a suspeição em (em relação a essa moeda cultural corrente ligada às imagens,) é o catalisador que permite sustentar a noção de subjectividade. É sustentada nessa subjectividade que se constrói o questionamento do mundo. Enquanto houver suspeição existe subjectividade. De certa forma, a tua pergunta remete igualmente para a importância da investigação artística como um processo de produção e disseminação de conhecimento ainda que esse conhecimento se possa situar no domínio do metafórico e da subjectividade. Isto é muito importante. Mas não deixa de ser produção de conhecimento, a arte sempre questionou o mundo, senão para que é que serve? Claro que tal desígnio poderá e deverá ser potenciado e sustentado pelas várias intersecções com outras áreas do saber. No meu entender só através de uma dinâmica de cruzamentos interdisciplinares, poderá levar a que a investigação artística se possa constituir como uma possibilidade credível no sentido da criação de uma presença e de um questionamento no mundo, sendo que a Academia tem um papel importante no processo. É claro que se coloca sempre a questão do alcance efectivo que este tipo de projectos pode ou não atingir. A falta de apoios financeiros surge sempre no topo das dificuldades. Contra isso não há fórmulas, mas também não vale a pena ficar no quintal das lamentações. A importância de projectos como A Invenção da Amnésia decorre da sua natureza colectiva, ecléctica e transdisciplinar e pela capacidade que tem tido de se constituir como um projecto sólido coerente e resiliente, apesar de todas as vicissitudes deste momento que atravessamos.

 

NA - Creio que a tua pergunta tem a ver com o valor que a fotografia tem nos dias de hoje, e com que critérios se atribui esse mesmo valor. Atravessamos uma época de mudança, mas essas fases de mudança têm acontecido ao longo dos tempos, exigindo uma adaptação da parte dos intervenientes, quer sejam fotógrafos/artistas quer seja do observador. É claro que, nos dias de hoje, esta super-produção de imagens faz-me equacionar uma série de coisas, e por vezes impede-me de sair para fotografar, quase como se tivesse receio que as imagens que faço não acrescentem nada, e que sejam apenas mais algumas no meio de tantas outras. Procuro contrariar isto, tentando fotografar com interesse e paixão as pessoas e território em redor do local onde habito. Este processo é feito ao longo de vários meses, o que me permite estabelecer uma série de relações e conhecer pessoas, lugares e as suas histórias, que são o que acima de tudo me faz querer continuar a fotografar.

 

MR - Estão aqui várias questões. Pelo menos, vários aspectos que merecem ser comentados. A questão da veracidade das imagens. Há uma história que é contada sobre o Picasso que ilustra bem esta questão, a meu ver: diz que o senhor, seguindo num comboio, é reconhecido por outro passageiro que o interpela, dizendo-lhe que gosta muito dos seus quadros, mas que estes podiam ser mais realistas; Picasso achou piada à questão e perguntou-lhe o que era, para ele, o realismo, ao que ele responde - Por exemplo, esta fotografia da minha mulher. Picasso observa longamente a imagem. Vê-a de frente, depois olha a imagem de lado e passado algum tempo, responde: - Parece-me incrivelmente cinzenta. E achatada!

Não querendo entrar no debate sobre a continuidade, ou não, entre a fotografia e a câmara clara, a perspectiva linear científica e a sua suposta descoberta, ou invenção por Brunelleschi, algures no Séc. XV, e a teorização de Leon Battista Alberti que se lhe seguiu tem uma importância fundacional na forma como a fotografia nos permite ver. As duas imagens que Brunelleschi pintou para a sua demonstração da perspectiva desapareceram, não há registo delas. Do mesmo modo, aquela que é considerada a primeira imagem fotográfica, feita por Nicéphore Nièpce, está guardada na sua casa museu na Borgonha com um esmero e dedicação incríveis, essa também não mostra nada, está lá uma chapinha de prata, com honras dignas de uma Mona Lisa, mas nenhum bigode a tornaria mais visível (ou risível). Assim, estes dois momentos, com a aura de rito iniciático que os acompanha, que marcam o início da capacidade de representar correctamente a partir de uma posição específica – o ponto de vista do sujeito – e a capacidade de fixar fotograficamente, sem intervenção humana, para citar mais um momento iniciático, neste caso do Talbot, mostram um vazio enorme, e enormemente denunciatório.

O Paulo Catrica tem essa capacidade incrível de meter um comentário futebolístico em todas as intervenções – fê-lo em todas as ocasiões em que o ouvi – e por isso, deixo-lhe aqui uma homenagem: Perante o vazio que estas imagens nos deixam, “Estamos em frente ao precipício”. E se isto começa por prometer um grande salto romântico para uma profundidade sem fim (e fazer do João Pinto o maior dos românticos!), também nos coloca perante a realidade concreta das imagens que o Picasso mostrava: são fixações de luz, ou de tinta, sobre superfícies planas. A profundidade na imagem é um artifício, uma ilusão.

Depois, a questão do peso ou da influência e da produção artística formalista (baseada na paisagem ou não), é outra questão que me parece interessante. Admiramos o Baldessari pelas “brincadeiras” com as distorções das escalas, mas criticamos todos os pequenos Baldessaris a segurar a torre de Pizza ou a segurar o sol entre dois dedos no Instagram. Nessa mesma plataforma, enjoam-nos as 30555 imagens do almoço por minuto, mas corremos a ver o Shore nos museus. Entre nós, que reconhecemos o papel de relevo do John Baldessari e do Stephen Shore na história da arte e da fotografia, todas estas imagens nos parecem ser cada vez um pouco menos do que as originais, pequenas xeroxes digitais a entupir as possibilidades da criação. No entanto, quantas dessas pessoas que repetem ad infinitum essas imagens, conhecem o seu valor “artístico”? A fotografia, nisso, é maravilhosamente democrática; mais, até, do que a coca-cola do Andy Warhol. Este nivelamento, que é quase como outra camada de superficialidade, é também o efeito dessa democratização que a fotografia abre: um tornar plano, horizontal, não só de tudo aquilo que retrata mas também da possibilidade de o retratar. Estamos perante um duplo “achatamento”, técnico e social: é este o poder da fotografia, e não sei se existe, hoje em dia, neste aspecto, algo mais poderoso. É cada vez mais fácil produzir estas superfícies aparentemente verosímeis da nossa realidade; é cada vez mais fácil fazer circular e disseminar essas imagens como figuração do universo de cada um; é cada vez mais fácil produzir algum tipo de notoriedade fora dos esquemas hierárquicos clássicos com que atribuímos valor aos objectos de arte.

Aqui reside um paradoxo que me tem interessado. Temos um espaço-tempo cada vez mais comprimido, com a informação a circular cada vez mais depressa e a ter cada vez mais impacto por cada vez menos tempo, e ao mesmo tempo, parece que tudo desaparece cada vez mais depressa, materialmente falando. As imagens desaparecem. Onde fica o efeito destas sobre quem as consome? Estaremos realmente assim tão desmaterializados como se diz? A fotografia, para circular online, não precisa dos satélites e dos bancos de dados e dessas tretas todas? E o que acontece ao nosso sistema nervoso, cada vez mais exposto, não só à informação, mas à forma como esta circula?

Ainda há pouco, em conversa com o David Infante, falávamos disto, do facto de, nalgumas publicações de renome, tipo National Geographic, já não ser necessário ir aos sítios produzir imagens. Isto tem um peso tremendo. De algum modo, quer dizer que realidade e a sua representação já não têm correlação directa. Nós, que ainda achamos por bem andar por aí a produzir imagens a partir da realidade visual à nossa volta, já não estamos a “documentar” a realidade, mas a sua construção por essas máquinas do fazer distante e à distância – a conversa com o David vinha exactamente daí, do peso tremendo que a construção em perspectiva tem na invenção destas novas realidades.

Isto para mim tem um lado assustador, que é o da diluição das referências, e da dificuldade que levanta ao fazer do trabalho artístico através da fotografia, mas também – e é quase a mesma coisa, na verdade – tem um lado maravilhoso, que é o de transformar esta fotografia quase numa espécie de discurso oral, face a um discurso escrito de formas mais canónicas da fotografia ou até da pintura. É uma associação muito livre, quase de treinador de bancada, mas parece-me interessante para o contexto. A malta mais nova talvez já troque mais imagens do que palavras entre si. A maior parte disso cai no esquecimento, como a maior parte do que dizemos. É suposto que assim seja. Não conheço os usos da pintura noutras épocas para saber se era usada no sentido desta associação com o discurso oral, mas não me parece. Falta-lhe esta coisa digital de se poder comunicar instantaneamente através da imagem. Assim, se calhar, há um ajuste na forma como pensamos a imagem, particularmente, na forma como pensamos no seu poder arquivístico que talvez seja novo desta natividade digital: o que é que vamos guardar disto tudo? Como vamos distinguir, nos usos do medium oralidade e escrita, e como vamos valorizá-los, um em relação ao outro, e cada um em relação às diferentes funções que cumprem?

Quanto ao anti-intelectualismo, acho que é uma birra de intelectuais por terem menos seguidores do que as Kardashians. Acho que as minhas respostas tornam evidente, pela quantidade de citações, que eu sou um intelectual. É uma herança que guardo com carinho. No entanto, também sei que a única vez que intelectuais tiveram mais de cem likes numa publicação de facebook, foi naquele célebre jogo entre os filósofos gregos e os filósofos alemães. Mesmo aí, o golo do Sócrates – o grego – sendo claramente um dos grandes golos da história do desporto rei, não teve um centésimo das visualizações do pior dos golos do Ronaldo.

Como é que isto pode ser questionado? Será que deve? Com todas as coisas péssimas que este sistema tem, há uma coisa que admiro: a capacidade de fazer chegar cada vez mais informação, de forma cada vez mais clara, a cada vez mais pessoas. Ainda que isto coloque um problema novo, que é o nosso, da livre circulação e do excesso de informação e de como lidar com ele, é um dado maravilhoso da quotidianidade: ao mesmo tempo que, numa entrevista qualquer sobre fotografia, um intelectual fala de futebol para ilustrar a impenetrabilidade das imagens, dois operários num café discutem as notícias de cosmologia na CMTV. “Mais Rápido que a Luz? Ainda não viram o Mbappé!!”

 

Imagem: Nuno Andrade

 

(©2021 Todos os direitos reservados. Texto: João Henriques/CEFT & Nuno Andrade, Fernando Brito, Miguel Rodrigues. Imagens: Nuno Andrade, Miguel Rodrigues. Vídeos: Fernando Brito)

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